Reproduzo hoje pra vocês artigo que escrevi
no sábado 4 de abril no Jornal do Commercio, sob o título “Samba do
crioulo doido”. Há algum tempo, estou escrevendo ali só uma vez por mês,
geralmente no primeiro sábado. Combinei isso com Ivanildo Sampaio, então
diretor da Redação e hoje coordenador do Comitê de Conteúdo do Sistema Jornal
do Commercio de Comunicação, pois acho que os mais jovens precisam de mais
espaço. Creio que vale a pena a transcrição para aumentar a conscientização sobre
como a nossa sociedade está se perdendo em um consumismo desbragado, sem
respeito a uma ética básica e descambando para supostas “facilidades” golpistas.
O título é de um samba enredo criado pela imaginação do jornalista Sérgio Porto,
que escrevia como Stanislaw Ponte Preta no velho Última Hora de Samuel Wainer.
Era época de preparação pro Carnaval do Rio,
em plena ditadura militar. A coisa estava preta, mas cismaram de encomendar a
um compositor de escola de samba uma composição sobre o tema “A atual
conjuntura”. Aí o cabra endoidou e largou coisas como “A princesa Leopoldina
foi obrigada a casar com Tiradentes”; “... falou com Anchieta. O Vigário dos
Índios aliou-se a Dom Pedro e acabou com a falseta. Foi proclamada a escravidão”.
E termina tudo assim: “Dona Leopoldina virou trem. E Dom Pedro é uma estação
também. O trem tá atrasado ou já passou”. O título de tudo: Samba do crioulo
doido.
Lá vai o artigo:
Há alguns dias, minha gente, ouviu-se em um
restaurante nem tão luxuoso assim um brado retumbante: “Em pouco tempo, não
teremos mais quem nos sirva. Todo mundo só quer ir pra faculdade”. Quanta
saudade da Senzala! Algo realmente positivo dos últimos governos brasileiros
foram exatamente ações capazes de uma maior inclusão social. O cara do brado
certamente não gostou. Gosta de ser servido por fâmulos. Certamente engrossou
as marchas pedindo a volta de uma ditadura sanguinária que torturou e matou
centenas de patriotas que desejavam um Brasil mais embebido de desenvolvimento
e civilização. Se vivo fosse em 1964, teria certamente marchado “com a família
e Deus pela liberdade” (que família?, que divindade?). O “Deus” inquisitorial
dos autos-de-fé. A “liberdade” de passar 21 anos de ordem unida e desmandos
acobertados pela censura.
Aqui onde me escondo, em Aldeia, tem uma
padaria expandida (chamam delicatessen, uma palavra francesa germanizada), na
Galeria Boulevard. As pessoas que a frequentam não são tão pobres de precisar do
Bolsa Família. No entanto, muitos saíam pela porta de entrada, sem passar pelo
caixa e jogavam a comanda eletrônica no estacionamento. Depois de muito
prejuízo, Fábio, seu dono boa-praça (desculpem gíria tão antiga), teve que
tomar providências para estancar a sangria.
Essa turma gostaria mesmo é de “proclamar a
escravidão”, na expressão de Stanislaw Ponte Preta em seu “Samba do crioulo
doido”. A única coisa que apreciam, em matéria de turismo, é Orlando, no máximo
Miami. Nada da cultura de Paris, Roma, Londres, Nova York, Boston. Pelas
janelas de seus carrões, voa todo tipo de lixo. Só estacionam enviesado,
ocupando duas e até mais vagas. Importantes e ocupados demais para manobrar
corretamente. Pior, para adquirir e transmitir aos filhos um mínimo de
educação, de civilidade.
Os mais abonados têm suas “continhas” no HSBC
da Suíça e alhures, que ninguém é de ferro. Onde colocar em segurança os
apurados do caixa-2, das propinas, da sonegação de impostos, da pilhagem ampla,
geral e irrestrita? São ações que atrasam o nosso desenvolvimento. E daí? Que
mal faz aos correntistas de paraísos fiscais que a educação e a saúde sejam tão
maltratadas, que tenhamos tanto déficit de saneamento, pavimentação, estradas
tão ruins; que tenhamos acabado com nossa malha ferroviária; que nossos ditos
representantes no Congresso nos representem tão pouco, ocupados em satisfazer
seus financiadores?
Quando chegará no Brasil a hora de sepultar a
cultura escravagista; de chegarmos ao menos à Revolução Francesa: liberdade,
igualdade, fraternidade?
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