terça-feira, 14 de abril de 2015

SAMBA DO CRIOULO DOIDO



Reproduzo hoje pra vocês artigo que escrevi no sábado 4 de abril no Jornal do Commercio, sob o título “Samba do crioulo doido”. Há algum tempo, estou escrevendo ali só uma vez por mês, geralmente no primeiro sábado. Combinei isso com Ivanildo Sampaio, então diretor da Redação e hoje coordenador do Comitê de Conteúdo do Sistema Jornal do Commercio de Comunicação, pois acho que os mais jovens precisam de mais espaço. Creio que vale a pena a transcrição para aumentar a conscientização sobre como a nossa sociedade está se perdendo em um consumismo desbragado, sem respeito a uma ética básica e descambando para supostas “facilidades” golpistas. O título é de um samba enredo criado pela imaginação do jornalista Sérgio Porto, que escrevia como Stanislaw Ponte Preta no velho Última Hora de Samuel Wainer.
Era época de preparação pro Carnaval do Rio, em plena ditadura militar. A coisa estava preta, mas cismaram de encomendar a um compositor de escola de samba uma composição sobre o tema “A atual conjuntura”. Aí o cabra endoidou e largou coisas como “A princesa Leopoldina foi obrigada a casar com Tiradentes”; “... falou com Anchieta. O Vigário dos Índios aliou-se a Dom Pedro e acabou com a falseta. Foi proclamada a escravidão”. E termina tudo assim: “Dona Leopoldina virou trem. E Dom Pedro é uma estação também. O trem tá atrasado ou já passou”. O título de tudo: Samba do crioulo doido.
Lá vai o artigo:
Há alguns dias, minha gente, ouviu-se em um restaurante nem tão luxuoso assim um brado retumbante: “Em pouco tempo, não teremos mais quem nos sirva. Todo mundo só quer ir pra faculdade”. Quanta saudade da Senzala! Algo realmente positivo dos últimos governos brasileiros foram exatamente ações capazes de uma maior inclusão social. O cara do brado certamente não gostou. Gosta de ser servido por fâmulos. Certamente engrossou as marchas pedindo a volta de uma ditadura sanguinária que torturou e matou centenas de patriotas que desejavam um Brasil mais embebido de desenvolvimento e civilização. Se vivo fosse em 1964, teria certamente marchado “com a família e Deus pela liberdade” (que família?, que divindade?). O “Deus” inquisitorial dos autos-de-fé. A “liberdade” de passar 21 anos de ordem unida e desmandos acobertados pela censura.
Aqui onde me escondo, em Aldeia, tem uma padaria expandida (chamam delicatessen, uma palavra francesa germanizada), na Galeria Boulevard. As pessoas que a frequentam não são tão pobres de precisar do Bolsa Família. No entanto, muitos saíam pela porta de entrada, sem passar pelo caixa e jogavam a comanda eletrônica no estacionamento. Depois de muito prejuízo, Fábio, seu dono boa-praça (desculpem gíria tão antiga), teve que tomar providências para estancar a sangria.
Essa turma gostaria mesmo é de “proclamar a escravidão”, na expressão de Stanislaw Ponte Preta em seu “Samba do crioulo doido”. A única coisa que apreciam, em matéria de turismo, é Orlando, no máximo Miami. Nada da cultura de Paris, Roma, Londres, Nova York, Boston. Pelas janelas de seus carrões, voa todo tipo de lixo. Só estacionam enviesado, ocupando duas e até mais vagas. Importantes e ocupados demais para manobrar corretamente. Pior, para adquirir e transmitir aos filhos um mínimo de educação, de civilidade.
Os mais abonados têm suas “continhas” no HSBC da Suíça e alhures, que ninguém é de ferro. Onde colocar em segurança os apurados do caixa-2, das propinas, da sonegação de impostos, da pilhagem ampla, geral e irrestrita? São ações que atrasam o nosso desenvolvimento. E daí? Que mal faz aos correntistas de paraísos fiscais que a educação e a saúde sejam tão maltratadas, que tenhamos tanto déficit de saneamento, pavimentação, estradas tão ruins; que tenhamos acabado com nossa malha ferroviária; que nossos ditos representantes no Congresso nos representem tão pouco, ocupados em satisfazer seus financiadores?
Quando chegará no Brasil a hora de sepultar a cultura escravagista; de chegarmos ao menos à Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade?

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