Viver é muito perigoso

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                                    MENINO DE ENGENHO

Na verdade, posso garantir e testemunhar que “viver é muito perigoso”, como repetia ao seu compadre Quelemém o personagem de Guimarães Rosa, em Grande Sertão – Veredas, Riobaldo Tatarana, aquele que se envergonhava de sua queda por Diadorim (moça disfarçada de jagunço para poder vingar a morte do pai), mas não conseguia controlar aquela atração. Só descobriu que Diadorim era mulher quando ela foi morta. Tragédia sertaneja. Um complemento que Riobaldo acrescentava a sua apreciação sobre a vida era “é um descuido prosseguido”. Certo também, pois a gente muitas vezes se descuida na vida, mas vai vivendo, a vida prossegue, ao longo de tantos perigos e descuidos. Perde oportunidades. Aproveita algumas. E lá vai prosseguindo no descuido. “São demais os perigos desta vida”, dizia o poeta.
No meu caso, houve perigos, e também muitos descuidos, descuidos até demais. “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, cantava Geraldo Vandré antes de sofrer lavagem cerebral. Pelo meu temperamento, esperei muito acontecer, em vez de fazer a hora e ir em frente. Reagi muito mais do que proagi ou preagi. Não foi bom pra mim. Garanto.
Sei que minhas observações e o que eu conto sobre a minha vida já adiantada (quase 82 anos neste momento, pois nasci em 28 de julho do longínquo 1932) não interessa a muita gente, pois não sou uma celebridade. Mas tomei a sério escrever minha biografia pensando nos meus filhos (Carlos Emanuel, Gustavo Henrique, Paulo e Marcos), as melhores coisas que aconteceram, e continuam acontecendo, na minha vida, junto com os quatro netos (Pedro, Rodrigo, Henrique e João Pedro) e duas netas (Maria e Ana). Ultimamente, ganhei um neto (Benito) e duas netas (Aurora e Celeste) do lado de minha mulher Patrícia, filhos de Hélida (uma filha que também ganhei). Estou seguro de que ela vai interessar também a minhas noras (Rosalva, Helena e Andréa), a amigas e amigos. E, quem sabe, a mais algumas pessoas.
Então, lá vai. Quando me lembro da minha infância, penso logo em Menino de engenho, de Zé Lins do Rego, livro que eu tinha anotado e chorado, mas que me foi subtraído. A casa-grande, as fruteiras, o rio Tapacurá, naquele tempo limpo e cheiroso, com os poços do Engenho e da Burra e, mais para cima, uma cachoeira que desapareceu com uma barragem que fizeram, o Roncador, o pasto, os canaviais, as casinhas dos moradores (naquele tempo, ainda não havia êxodo rural e boias frias). Eram o nosso Sítio do Picapau Amarelo, meu e de meu irmão Juarez. Minha irmã Ruth era mais nova e, além disso, essa conversa de clubes do Bolinha e da Luluzinha ainda era levada muito a sério. Era o Engenho Bateria (Vitória de Santo Antão), adquirido, junto com o Outeirão, por meu avô José Pereira de Andrade, vindo da Mata Norte (Timbaúba) onde não tinha mais espaço.
Mesmo com Ruth solitária no Clube da Luluzinha, uma tarde, saímos os três sorrateiramente passando para o lado do pasto. Quando a gente estava já um pouco longe da cerca, lá vem um boi brabo, amarrado a uma tora pesada de madeira, que se usava para amansar o bicho, o que não lhe tirava totalmente a perigosa mobilidade. O jeito era correr, mas Ruth ficou para trás com as perninhas curtas e sem sacar o perigo. Quando a gente já estava chegando à cerca, percebeu a coisa e voltou para arrastá-la. Quando conseguimos passar por baixo da cerca de arame farpado, o miúra já estava bufando de raiva ali rente a nós. Vige Maria! Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador!
Interessante como o gado pressentia a chegada da chuva. Os bois começavam a correr pra um lado e pro outro a esmo, feito uns lesos, “adivinhando chuva”, como se dizia. Alguns nomes deles ficaram na minha lembrança e sempre ligados ao que significavam: Baluarte, por exemplo; o meu conceito de baluarte sempre passava pelo boi. Quando tinha vaca parida, a gente se levantava bem cedo, pra ter tempo de reinar mais, e ia tomar o que chamávamos “leite no pé da vaca”: grandes canecos com muito açúcar que pegavam diretamente o leite ordenhado ainda quentinho. Uma delícia. Ninguém morreu por tomar leite cru. Outra ameaça de atualmente com que a gente convivia numa boa era o que se chamava de aruá, aquele bichinho feito um caramujo, hoje temível transmissor de xistosomose. A gente ia lá em baixo, na beira do rio, pegava alguns, subia pra cozinha, levantava aquela tampinha que ele tem, botava sal e jogava o bichinho em cima da chapa quente (fogão a lenha). Daí a pouco estava assado. Era só quebrar a casquinha, tirar o fato (como os matutos chamam o intestino e adjacências) e papar. Se fosse hoje, daria um bom tira-gosto.
Como na época quase não havia brinquedo industrializado, nem games, nem computador, essas coisas, a gente lia muito. Monteiro Lobato enchia nossas cabeças e eu ficava imaginando uma invasão da sede do engenho por onças, jaguatiricas, cachorros do mato. Tinha medo da Cuca, da Cabra Cabriola, assombrações. Inventávamos muitos brinquedos. Uma vara de pau era um cavalo. Uma tampa de panela dava um bom caminhão, era a direção. Quando as cozinheiras procuravam as tampas, cadê? A imaginação é coisa boa para desenvolver a cabeça. Juarez e eu tínhamos nossos próprios engenhos. Bastava reservar cada um para si uma área como uma clareira, uns pés de laranja, umas moitas e pronto.
E os banhos no rio, na parte mais rasa. No profundo Poço da Burra, nem pensar. A água era tão limpa que a gente enxergava os peixes nadando. Tínhamos boas relações com os filhos dos moradores que viviam mais perto, principalmente com os do compadre Cícero, velho escudeiro de Papai. Fui padrinho de um menino dele chamado Ivo, pouco antes de papai morrer. Batizado na igreja dos beneditinos ali perto, hoje afogada pela Barragem do Tapacurá. Ali por perto, nasceu o embrião da Universidade Rural pelas mãos do monge beneditino alemão Agostinho Ikas.
A gente zanzava muito pelo engenho, “em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana”. Milagrosamente, nunca fomos picados por cobras venenosas, abundantes por ali, nem morremos afogados, nem de queda de árvores ou de pinguela. Quando a gente levava uma queda mais incrementada, nos machucando, quase perdendo os sentidos, Mamãe invocava São Brás, mas, como se não confiasse muito na ajuda do além, gritava também por Celestina (Tintina), empregada de confiança, muito chorada quando nos deixou para casar. Era “São Brás!, São Brás!, Celestina!”.
Conhecíamos os “moradores” do engenho, como se falava naquela época, pré-êxodo rural e pré-boias-frias. Eram quase sempre os mesmos, sem grande flutuação. Papai concedia a cada um espaço para plantação de macaxeira, feijão, o que lhes melhorava a subsistência. Tinha o compadre Cícero, homem de confiança, que guardava a casa-grande quando o coronel Paulino tinha de viajar. Ele e a comadre Maria tinham uma filharada enorme, no sítio Cambira (que Papai deixou pra ele em testamento, numa antecipação da reforma agrária). Com o mais velho, Pepê, brincávamos muito. Ele nos ensinou onde e como buscar os prazeres do sexo precoce.
João Vicente era o que se chamava “cabo”, uma espécie de feitor, que marcava as contas (espaço em que o trabalhador devia cortar cana) e vigiava o serviço. Ele tinha uma pistola de dois canos, que a gente nunca esqueceu. Em matéria de armas, havia muitas em casa. Não que Papai fosse belicoso. É que a maioria havia sobrado das brigas da década de 1930, como o levante comunista de 1935. O Exército armava os coronéis, mas depois esquecia de recolher as armas. Muitos anos mais tarde, na década de 1970, um amigo meu, latifundiário em Presidente Prudente (SP), me mostrou um porão disfarçado, em sua casa, cheio de armas que tinha recebido do Exército na preparação do golpe contra Jango.
A gente ia a Vitória de Santo Antão, às vezes, onde moravam irmãs e um irmão por parte de pai: Noemi era casada com o tabelião Manoel de Holanda e tinha, naquela época, duas filhas e um filho. Lauro casou naquele tempo com Edite. Ainda não tinham filhos. Ele tinha uma mercearia. Nair morava com madrinha Acácia e João Paulo, que era dentista, os três solteirões. Íamos frequentemente à casa do compadre Cícero e da comadre Maria. Também às vezes à casa de uns compadres que Papai tinha no vizinho engenho Pombal, de Hisbelo de Andrade Lima. O compadre e a comadre tinham uma venda lá e, todo ano, aparecia mais um filho. Servia-se “cachimbo” no batizado, mel com cachaça, que, claro, a gente não tomava. Papai também organizava umas pescarias, que atraíam muita gente, quando também se tomava muita cachaça. Parte do resultado da pescaria era distribuída com os moradores. Creio que meu pai era socialista sem saber.


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                                    PARAÍSO PERDIDO

E assim a gente ia levando nossa vida nesse paraíso. Papai não era muito festeiro, mas no São João ele fazia questão de mandar armar uma grande fogueira, comprar fogos pra gente soltar. Tinha um troço lá para explodir, de que só adultos participavam a distância regulamentar. Era a ronqueira (que também chamam transvaliana; na minha memória, são a mesma coisa). Pegavam um pedaço de cano, enchiam de pólvora, acendiam um pavio e corriam para longe. A explosão era algo sensacional. Creio que se ouvia até nos engenhos vizinhos (Outeirão, Pombal, Ana Vaz) e no Monte das Tabocas. A preparação da canjica em um imenso tacho também ficou marcada na minha lembrança. Além de pamonha e outras comidas juninas. Uma eternidade depois, reencontrei a “canjica no tacho”, mas na abertura de um velho programa de Chico Anysio cantada por duas lindas garotas.
Além das nossas aventuras por conta própria, que não eram poucas, fazíamos, como disse, passeios a Vitória, onde havia, e há, uma grande parentela, e recebíamos visitas no engenho. De primos, primas, sobrinhos, sobrinhas (Papai casou com Mamãe depois de ficar viúvo e temos sobrinhos da nossa idade) e outros parentes. Quem era muito amiga de Mamãe e sempre pintava por lá era minha cunhada Edite, casada com Lauro. Papai também recebia suas próprias visitas. As que mais recordo são a de um cara chamado Fenelon, que cheirava rapé, e de tio Antônio, nosso vizinho de Outeirão, que contava muitas histórias e dava umas gargalhadas dobradas. Papai também organizava grandes pescarias, a que comparecia muita gente. Parte do resultado da pesca ficava para os moradores, como já falei. Ele era um cabra com muito senso de justiça e herdei dele meu socialismo, cristão (Atos dos Apóstolos), com tinturas marxistas.
Tem umas histórias engraçadas. Como a do matuto que estava na rua (como eles chamam a cidade) e deu uma carreira só até o engenho quando viu passar um teco-teco jogando panfletos. Era tempo de guerra e, com aquelas conversas de bombardeios, ele achou que os panfletos fossem bombas. Outra, de um grande eclipse do Sol na mesma época. Foi total e durou um bom tempo. As galinhas acharam que era o cair da tarde e se encaminharam disciplinadamente para os poleiros. Muita gente pensou que era o fim do mundo.
Mas não era só vadiação. Mamãe foi nossa primeira professora, nos ensinando a ler e escrever. Graças a Deus, já na nova ortografia de Emília no país da gramática (Monteiro Lobato), pois, pela vida afora, topei com tantas reformas, graças ao autoritarismo de gramáticos e lexicógrafos. Já estou cansado, e aí apareceu mais uma, que quase não consigo assimilar. Não faz o menor sentido tantas reformas, principalmente num país de analfabetos. A língua é algo sério demais para ficar entregue a gramáticos e lexicógrafos. Uma reforma tira acento em tais palavras, a outra recoloca; regrinhas sem sentido e plenas de mesquinhez, que só os entendidos dominam. Uma criança pega um livro de alguns anos atrás e fica toda confusa. Bem, o certo é que aprendemos a filosofar sem ph. A língua espanhola fez sua reforma também, sem por fim a letras básicas e que perdura quase sem mudanças. Lembro dos cabeçalhos dos deveres, onde constavam os anos de 1938 e 1939.
Perdemos o paraíso quando tivemos de ir para a escola, em Vitória, após recebermos os primeiros rudimentos da sabença. Quando chegou a 2ª Guerra Mundial pra valer mesmo (porque antes Hitler já vinha invadindo a Áustria, parte da Tchecoslováquia), em setembro de 1939, eu já lia e me lembro das temerosas manchetes dos jornais do Recife, que Papai mandava comprar na estação ferroviária de Tapera (hoje Bonança; pra que trocar os topônimos?; e pra que acabar com os trens?). Era tanto jornal. Além dos sobreviventes Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco, tinha a Folha da Manhã, Jornal Pequeno, Diário da Manhã e mais. Logo comecei a ler Seleções do Reader’s Digest, naquele tempo muito boa com suas reportagens sobre a guerra, como a do cinematográfico afundamento da belonave alemã Bismarck.
A 2ª Guerra tornou-se assim a minha guerra. Até hoje revejo todos os filmes que tratam de episódios como o Dia D (invasão da Normandia), a invasão da Sicília e sul da Itália, o avanço do Exército Vermelho na frente oriental, após os nazistas chegarem aos arredores de Leningrado (hoje São Petesrburgo) e Stalingrado (hoje Volgogrado). E foi a última guerra eticamente justificável, do lado dos aliados que combatiam a barbárie nazifascista. Depois as guerras começaram a ser promovidas, inventadas, incentivadas para que não cessem os lucros da indústria bélica. Se não houvesse mais guerras, os Estados Unidos e outros produtores de armamentos parariam, com milhões de desempregados. Civilização?
Como nem tudo é perfeito, perdemos o paraíso quando chegou a hora de ir para a escola em Vitória. Não dava para levar e buscar a gente todo dia, como daria hoje com a BR-232. Eram cerca de 12 km de lama no inverno. E Papai não tinha automóvel; tinha dois caminhões para carregar cana. Juarez, mais velho, foi para um internato no Recife. A mim coube a escola da professora Marieta Moura e, posteriormente, o colégio do professor José Aragão em Vitória, e ficar morando na casa de uns tios rígidos.

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         UM PEQUENO PARAÍSO DE FIM-DE-SEMANA

A salvação estava na casa de Manoel de Holanda, casado com minha irmã Noemi. Ele tinha um cartório, era grande cabeça, autodidata e dono de boa biblioteca, além de contador de histórias hilariantes. As minhas reinações migraram de Bateria para a casa de Noemi. Ela era minha meio-irmã pelo lado paterno. Papai teve dois casamentos; depois de viúvo, casou com dona Glorinha, minha mãe. Meu cunhado e minha irmã tinham duas filhas mais ou menos da minha idade, que reuniam lá muitos amigos e amigas (estas o melhor da festa), para brincar no final de semana. Eu ia também às vezes na casa de tia Lise, irmã de Mamãe, mas as meninas dela já eram maiores e não davam muita bola pra um pirralho. Mesmo assim, as saudades eram grandes. Nada como o engenho, com os banhos no rio, os aruás assados na chapa do fogão, pasto, curral, muita fruta, boi brabo arrastando uma tora de madeira, as aulas de Mamãe, maternais e bondosas (nada a ver com Aragão e sua temível palmatória).
Manoel construiu no fundo do quintal uma casinha bem pequena, de brincadeira, que era nosso reduto absoluto. Dificilmente adultos por lá apareciam, com o olho em namoricos mais avançadinhos. Que chatos! Uma vez uma menina e eu ficamos ali sozinhos, não lembro por que, mas numa atividade bem séria e respeitável, lendo juntos Os doze trabalhos de Hércules. Mas, como a carne é fraca, rápido esquecemos as colunas de Gibraltar, a hidra de Lerna e partimos para uma exploração anatômica cheia de curiosidade. Quando a gente estava bem entretido, surge na porta da cozinha um adulto não convidado caminhando pra nossa casinha. O que vale é que estávamos bem juntinho da janela, vimos o perigo (que bronca!), disfarçamos e brandimos comportadamente o livro na maior inocência. Isso me recorda aquela história do casalzinho na casa de farinha (“Eu tava na peneira”). Só que eles comportadamente ficaram só peneirando farinha madrugada a dentro. O pai dela foi lá e “até riu da brincadeira”.
Durante a semana, eu ficava na casa de tio Joca (João Paulo Veloso de Andrade), que era dentista, solteirão e rigoroso. Mas o rigor mesmo estava em outras duas solteironas que moravam com ele, madrinha Acácia, irmão de Papai, e madrinha Nair, outra meio-irmã minha. Beatas, elas me carregavam pra igreja a qualquer pretexto de novena, Mês de Maio. Era uma religiosidade doentia que não as impedia de descarregar em mim suas frustrações. Olhe que o professor Aragão era cruel, mas elas achavam pouco e, na matrícula, Nair recomendava mais rigor ainda. Nunca contei a Papai e Mamãe as torturas por que passei. Tinha vergonha.
Nas férias, voltávamos ao engenho. Mas Papai já estava bem doente e não havia mais aquelas festas de São João, aquelas pescarias. Uma vez, Papai passou um grande tempo no Recife com Mamãe e nos levaram. Para não perder o ano, fiquei seguindo as aulas do Grupo Escolar Frei Caneca, em frente à extinta fábrica do guaraná Fratelli Vita (Rua Nunes Machado). Hoje a escola mudou-se para Santo Amaro e aquele prédio pertence à Universidade Católica. Como o ensino no Brasil andou tanto pra trás nestes anos! Os nossos professores eram gente do maior gabarito, como Maria Rocha, Maria José Baltar, Anita Paes Barreto. Aprendia-se mesmo, na escola pública. E, apesar da esculhambação didático-pedagógica do colégio de Aragão, eu aprendi muita coisa também ali, pois sempre gostei de ler, tinha muita curiosidade por história e geografia, tanto que acompanhava bem as evoluções da guerra na Europa, na África e mais tarde no oceano Pacífico.
Numa de nossas idas ao Recife, Vovó me levou com ela para fazer uma visita à amiga dona Nazinha Leitão, que morava em Olinda num daqueles chalés idênticos do Carmo. De bonde, claro, outro bom transporte a que deram fim por aqui. Nunca mais deixei de querer bem a Olinda. Vi o mar pela primeira vez. Um navio ia saindo do porto e eu passei vários dias desenhando navios. O mar não brigava ainda com a orla de Olinda e o quintal de dona Nazinha era bem extenso. Papai ia piorando de saúde e ficou os últimos dias na casa de Tio Joca. Ele morreu a 9 de setembro de 1943, com 60 anos, devido a problemas de coração e pulmão. Naquele tempo, a medicina não tinha os recursos de hoje.

Adeus engenho! Mamãe ainda ficou um tempo em Vitória e depois viemos morar no Recife dividindo uma casa, na Soledade, com Tia Margarida, mãe de Maria Luiza e Margarindinha. A guerra já se encaminhava para o fim e o Recife e Olinda viviam cheios des soldados, inclusive americanos, esperando “os alemães e seus canhões”. Eles só chegaram por aqui em submarinos mortíferos que afundaram vários navios, inclusive de passageiros, o que levou o Brasil a entrar na guerra. A FEB lutou bravamente na Itália. Morreu muito mais gente do que deveria, graças a muitos comandantes incompetentes, que só entendiam de golpe e, antes, pretenderam que Getúlio ficasse do lado dos alemães. Havia blecautes, que hoje chamam apagões.

                                  

   SEMINÁRIO DE OLINDA. A GUERRA CAMINHAVA PARA O FIM



Esqueci, no capítulo anterior, um ponto importante das atrações da casa de Noemi e Manoel. Minha sobrinha Miriam (hoje morando em São Luís do Maranhão e mãe do blogueiro-roqueiro João Paulo; ver aí entre os meus preferidos) era a intelectual da turma, gostava de ler, como eu, e ganhava muitos livros do pai e me emprestava. Assim eu tinha acesso a Monteiro Lobato e outros autores de livros infantis, Tesouro da Juventude etc. Este era uma enciclopédia para adolescentes muito boa, não sei se da Enciclopédia Britânica. Eu também ganhava alguns livros de presente. Não esqueço um, Os quatro descobrimentos da América, presente de Noemi, que nem terminei de ler apesar de ser interessantíssimo. Um professor de duvidosa pedagogia o arrancou de minhas mãos e passou-o imediatamente para um filho dele (!!!???). Não era hora de aula nem de dever nem nada. Estávamos aguardando alguma aula.

Quando Papai morreu, em 9 de setembro de 1943, eu acabara de completar 11 anos. Mamãe ainda passou algum tempo em Vitória de Santo Antão e, no final do ano, já estávamos morando no Recife, onde Vovó Maria Augusta, ela e tia Margarida alugaram uma casa no largo onde fica a igreja de Nossa Senhora da Soledade. Havia muito pouco movimento ali na época. Amália, empregada de Vovó, sempre atravessava o largo na maior calma, sem medo de ser atropelada. O bonde que passava ali não atrapalhava o ar pacato, pois saía da Rua Fernandes Vieira e pegava a Oliveira Lima, passando pela fábrica Fratelli Vita. Mas um dia Amália ia atravessando pachorrentamente quando aparece um caminhão que quase a atropela. O motorista pergunta: “Quer morrer?”. Resposta dela: “Ninguém num é besta”.

Era muito divertido. As primas Maria Luiza e Margaridinha estudavam ali perto, no Colégio São José. Eu me preparava para fazer o exame de admissão ao ginásio (que correspondia aos quatro últimos anos do atual primeiro grau, ou fundamental; vive mudando a designação). Fiz o exame no Colégio Marista, também perto dali, porque tinha botado na cabeça que iria para o Seminário de Olinda, e para tal exigia-se admissão no Marista. Timidez? Medo de enfrentar hostilidades? Ou seria mesmo uma vocação? O fato é que, em fevereiro de 1944, estava eu subindo com Mamãe a ladeira do Seminário. Minha saúde não estava boa. Além das férias de junho, voltei várias vezes para casa para tentar melhorar. Estudar, estudei muito pouco, ficando para fazer exames de segunda época ou repetir o ano.

Aprendi os primeiros rudimentos do latim com cônego Oswaldo Brasileiro, uma santa figura que víamos, nos intervalos das aulas, rezando no túmulo da mãe dele no cemitério do Convento de São Francisco, mais abaixo. O professor de português era padre Severino Nogueira. O de matemática, cônego Aníbal Santos, dava aulas de costas para a gente resmungando sozinho com o quadro-negro. Graças a ele, até hoje sou muito ruim no ramo matemático-algébrico e adjacências. Na hora do recreio, a gente (os mais novos) jogava bola no pátio que tem na entrada do Seminário. A bola escorregava muito, ladeira abaixo, e ia cair no sítio dos Manguinhos. Tinha lá um caseiro apelidado Maxixe. Quando se ouvia o grito “maxixou”, um era escalado para ir buscar a pelota. Que luta!

De noite, depois da oração do salmo Miserere mei Deus, tentava-se espantar as assombrações que cercavam aqueles veneráveis muros de mais de um metro de largura, com alguns séculos nas costas, para poder dormir. Eu me distraía com a luz do Farol de Olinda, logo atrás do dormitório da gente, contando quantas vezes ela varria o vasto salão, até adormecer. Tinha vontade de escalar o Farol, o que só realizei meio século depois, já neste 21. Já estávamos na virada da guerra e não havia mais o que se chamava na época de blecaute, que era aquele apagão para os submarinos nazistas não enxergarem Olinda e o Recife. O Alto da Sé era coalhado de barracas de soldados, que aguardavam para defender Olinda de uma invasão, para não acontecer como quando os holandeses desembarcaram onde hoje é Pau Amarelo e surpreenderam os portugas. Mas não se chegou a tanto. A derrota de Hitler já se esboçava. Em junho, os aliados desembarcavam na Normandia. No leste, o Exército Vermelho começava a empurrar os alemães de volta para casa.

Ainda hoje, vou a uma confraternização anual dos ex-alunos do velho seminário. Conheço poucos porque só passei um ano ali. Mas tem missa em latim, para recordar os velhos tempos, cantoria em gregoriano e oportunidade de rever aqueles muros, paredes e salões veneráveis, cercados de lendas. Em 1945, passei para o Seminário de Mossoró (RN), onde meu tio dom João Batista Portocarrero Costa era bispo desde 1943. Mamãe, viúva, foi morar com ele. Fiquei ali até 1950, completando o que se chamava de seminário menor, correspondente aos antigos cursos ginasial e científico (ou clássico). Fui então estudar filosofia no Seminário Central de São Leopoldo (RS), que formava padres para o clero diocesano, mas era dirigido por jesuítas. Foi meu primeiro contato com essa ordem venerável, que, também muitas décadas depois, produziria um papa cristão (como o foram também João 23 e João Paulo 1º), o Francisco, que está sacolejando com muita força a Igreja de Cristo.



             EM MOSSORÓ. AVENTURAS NO SERTÃO POTIGUAR




A viagem para Mossoró foi longa e difícil. Mas na minha idade, 12 anos, apenas mais uma aventura. Viajei com Mamãe de trem até Natal. Ruth, creio, estava interna no São José e só depois foi estudar em Mossoró e Fortaleza. Juarez ficou na casa de Tia Lise, uma tia muita querida de todos nós. Não queria estudar e, assim, só podia pegar trabalhos de baixa remuneração. Meu querido irmão, único de pai e mãe, tinha dificuldade para se enquadrar em qualquer esquema, era uma espécie de anarquista. Papai tinha feito grande sacrifício para mandá-lo estudar no Recife, primeiro no Marista e depois no Salesiano, interno. Do Salesiano ele foi expulso após fugir, com alguns colegas, para participar de um quebra-quebra contra lojas de súditos do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) motivado por afundamentos de navios brasileiros na costa, por submarinos alemães. Essas reações, talvez justificáveis na ira do momento, não faziam muito sentido pois aqueles comerciantes eram imigrantes que haviam optado pelo Brasil. Como ocorre em uma certa irracionalidade de explosões populares, até judeus (grandes vítimas da ira nazista) foram atingidos, por portarem nomes em alemão.

Mas o que eu estava dizendo é que Juarez era um rebelde. Com causa? Sem causa? Meu tipo de rebeldia é outro: na militância política (quando era mais jovem) e com a arma da escrita irônica e mordaz, como dizia meu colega e amigo Moysés Kertsman. Mamãe e eu fomos de trem até Natal, numa viagem com paradas não programadas, atrasos misteriosos, que durou um dia e uma noite. A Great Western, predecessora da Rede Ferroviária Federal, estava sucateada devido à falta de investimentos dos ingleses, ocupados com a guerra. Depois parou. Acho que é o único caso no mundo de abandono de um investimento pesado em infraestrutura. O Brasil fez uma opção exclusiva pela indústria automobilística e as rodovias. Na Europa, descobri depois, se vai para toda parte de trem, em viagens rápidas e confortáveis. Os bondes não foram aposentados, como aqui. E o transporte público não é o desastre e a bagunça que temos por cá.

De Natal pegamos outro trem, que ia até Angicos, e, dali para Mossoró, fomos num simulacro de ônibus que chamavam de misto. Eu não estava bem de saúde e, para completar, peguei uma coqueluche braba que demorou a passar. Até de teco-teco eu voei, pois diziam que era bom pra esse mal. Mas também, depois disso, as doenças se esqueceram de mim por muito tempo. Em fevereiro eu já estava matriculado no Seminário, fazendo o 2º ano ginasial, após comprovada minha capacidade. Na época, a cidade era uma lástima, com alguns poucos ricos e muita pobreza. Sertão. Calor de torrar. Mas era mais uma aventura para uma criança pré-adolescente. A partir de então, completei o que corresponde hoje aos últimos anos do ensino fundamental e ao 2º grau. Talvez a designação seja outra. Não dá para levar a sério a constante mudança de nomes; é o modo brasileiro de fazer reformas sem mudar nada, só pra pior.

O reitor do Seminário era Padre Huberto Bruening, um catarinense transplantado para ali pelo primeiro bispo da diocese, Dom Jaime Câmara, que mais tarde foi cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro. Um colega meu de turma, José Freire, mais tarde foi bispo de Mossoró. Eu gostava daquela vida. A gente jogava muito, lia muito. Melhorei bastante o meu latim e o meu português. Mas o meu forte continuava sendo história e geografia. Para melhorar a nossa formação, a uma certa altura o meu tio bispo contratou padres holandeses da Congregação da Missão, também conhecidos como lazaristas, pois São Vicente de Paulo, seu fundador, se instalou no convento parisiense de Saint Lazare.

Eles eram excelentes professores. Padre Jerônimo, que coseguiu empurrar em minha cuca avessa a contas, operações, logarítimos, algum conhecimento dessa área. Minha base era péssima porque, em Olinda, eu tivera um professor que dava aulas resmungando pro quadro negro, como já falei. Tinha Padre Joãozinho, que nos ensinava grego e inglês. Padre Paulo, grande pianista. Hoje os recordo com meu amigo Padre João Pubben, que os conheceu. Também é lazarista, foi pastor em Dois Unidos e teve de regressar à Holanda por motivo de saúde.

O reitor, padre Francisco Jansen, era uma figura de quem me lembro com veneração e saudade. Enquanto os padres mais jovens tinham vivido a guerra na Holanda e ainda nem falavam bem português, ele estava há muito no Brasil, em Fortaleza. Era um cara culto e contador de histórias que nos encantavam. Mais adiante, foi bispo na Etiópia, antes de regressar à sua terra. Durante as férias, às vezes eu voltava ao Recife, mas, quase sempre, a gente andava pelo interior do Rio Grande do Norte. Lembro umas férias que passamos na praia da Barra, do lado esquerdo da desembocadura do rio Apodi, olhando para Areia Branca, do outro lado. A turma caminhou uma vez quase até Tibau, na fronteira com o Ceará. Infelizmente não fui nessa aventura. Teve um congresso eucarístico lá e o hino dizia “Areia Branca sim triunfará. Viva Jesus Cristo que nos salvará”. Mais tarde, quando eu estava virando “subversivo”, descobri que a música era do hino do Partido Comunista Italiano, cuja letra dizia: “Bandiera rossa si trionferà. Evviva il communismo e la libertà”. Pode?

Conheci Tibau depois e, muito depois, descobri outra praia, abaixo de Natal, que se chama Tibau do Sul. A gente também andava muito pelo interior do oeste do Rio Grande do Norte. Fiquei conhecendo Pau dos Ferros, terra de um amigo que fiz depois, Calazans Fernandes, Mombaça, Martins, Portalegre, Luís Gomes. As três últimas são serras de clima ameno, às vezes até frio, como oásis em pleno Sertão. Luís Gomes fica nos confins do RN com o Ceará e a Paraíba. Descendo a serra, chega-se a Uiraúna (PB), aonde não fui, mas que é a terra de uma grande figura que conheci bem mais tarde, Israel Galiza, já falecido, pai de Andréa, mulher de meu filho mais novo, Marcos, e mãe de João Pedro e Ana. Também é a terra da grande Luiza Erundina, que foi prefeita de São Paulo e hoje é uma brava deputada.

Uma vez fiz uma viagem de Mossoró ao Recife na boleia de um caminhão. Foi sensacional. Fomos pelo Seridó desembocando na Paraíba e rodando para Pernambuco. Estradas sem asfalto naturalmente e a gente comendo em botecos de beira de estrada e dormindo no próprio veículo. Tome aventura! Vi em muitos lugares aquelas lâmpadas que havia antigamente a álcool e que iluminavam que era uma beleza. Lembrei o paraíso perdido do engenho Bateria, onde não havia energia elétrica e a gente usava aquelas lâmpadas maravilhosas. Só não tinha o Aladino.



DO RIO GRANDE LÁ DE RIBA, O DOS POTIGUARES, AO LÁ DE BAIXO, O DOS GAÚCHOS



O tempo que eu passei em Mossoró foi muito bom, além de proveitoso quanto aos estudos. No entanto, não acho conveniente o regime de internato, sobretudo com segregação de sexos. Não se pode escolher uma vida celibatária na adolescência, sem conhecer a fruta, nem ao menos conviver com garotas. Principalmente numa época ainda de rigor tridentino: você fazia o voto de castidade e pronto. Não tinha volta, até depois do Concílio dos anos 1960, quando foi permitido que padres se casassem desde que abandonassem a vida clerical (estranhamente, os pedófilos, confessos ou não, não precisam se desligar do clero). Eu acredito que tinha vocação para assumir tal compromisso, até 1957, quando fiz uma revisão e descobri que não deveria fazer um voto sem retorno; nada me garantia o seu cumprimento, pois uma lei de direito canônico não pode substituir um dom, uma graça divina.

Naquele tempo ainda não haviam saído do segredo das clausuras, sacristias e casas paroquiais os escândalos de homossexualismo e pedofilia que começaram a pipocar, aqui e ali, na virada de séculos. Não que não houvesse antes; mas começaram a vir à luz por denúncias de prejudicados. As lembranças que tenho são, em grande maioria, de mestres sérios e cumpridores de seus votos e de colegas que viviam celibatariamente, mesmo antes de votos. Mas posteriormente, repensando a vida que levávamos, admito que havia algumas situações esquisitas que eu não percebia dado o meu grande desligamento da realidade. Com o olhar de hoje, estou convencido de que seminários para crianças e adolescentes e a segregação sexual em geral fazem mal à saúde das pessoas e da Igreja.

Bem, terminada a minha jornada mossoroense, no início de 1950, viajei com José Freire e Américo Simonetti para São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, bem diferente do outro Rio Grande que eu conhecia. Lá havia o Seminário Central de São Leopoldo, que formava padres para as dioceses dos três Estados do Sul e alguns também de fora. Lá também estudavam seminaristas de várias congregações religiosas. Era dirigido pelos jesuítas, que também tinham naquela cidade sua própria Faculdade de Filosofia, o Colégio Cristo Rei. Fizemos uma viagem comprida e trabalhosa, do Recife até Porto Alegre, num navio da antiga Costeira chamado Itapuy (“Peguei um ita no Norte”), parando em quase todos os portos do caminho, desde Maceió até Pelotas e Rio Grande, já no RS. No Paraná, paramos não só em Paranaguá, mas também num porto lá nos confins daquela baía, Antonina. Quase o navio encalhou.

Mais uma vez, eu não estava bem de saúde. Mas era um mal mais psicológico, que os teólogos chamam de doença de escrúpulos. Você acha e sente que tudo é pecado, até coisas inocentes e singelas. De tanta maluquice que certos padres botam na cabeça da gente, o cara termina ficando perdido em culpas imaginárias e inibido de agir no dia a dia. É terrível. Mas terminou passando. A viagem durou tanto que chegamos atrasados para a abertura do ano letivo – 1º ano de um curso de filosofia de três anos. Tivemos de fazer à parte uns 30 dias de lógica formal, onde se aprende os segredos do raciocínio. Tudo em latim. Enquanto isso, embarcávamos nas aulas de ética, ontologia e por aí vai. Já era de março pra abril e o tempo começava devagar a esfriar. Algo que eu não conhecia no Sertão, a não ser nas serras altas do Rio Grande do Norte (Martins, Portalegre, Luís Gomes), nem mesmo na Zona da Mata de Pernambuco.

Gostei dessa época de minha vida. Um mundo completamente diferente do que eu conhecia. Os colegas tinham nomes de família alemães, italianos, e vinham, na maioria, de colônias muito atrasadas. O país ainda não estava integrado, como hoje, para o bem e para o mal, através da televisão. Uma vez, no interior, mas não longe de Porto Alegre, pedi uma informação e o cara não sabia falar português. São Leopoldo é uma cidade fundada por imigrantes alemães e um grande centro de formação luterana. Onde funcionava o Seminário Central, depois transferido para Viamão, há hoje a Universidade do Rio dos Sinos.

Aprendi muito. Gostava mais da história da filosofia, embora, ao menos naquela época, nas escolas católicas, todo o poder fosse da chamada filosofia escolástica, São Tomás de Aquino à frente. Nada mau, pois essa vertente deriva do melhor da filosofia grega, incluindo Heráclito, Sócrates, Aristóteles. Onde se ancora também Karl Marx, embora com tinturas materialistas. Interessante que devemos aos sábios árabes Avicena e Averroes, no Reino de Córdoba, derradeiro baluarte árabe na Península Ibérica, a descoberta e preservação de muitas obras originais de Aristóteles, escapadas da razzia de um cristianismo equivocado.

Nas férias do fim do ano, fui para o Rio, com passagem paga por minha tia Gracinha. Ela estava doente de câncer e havia convidado Mamãe para passar um tempo com ela, o que nos propiciou matar saudades mútuas. O apê de tia Gracinha era na esquina da Rua Bento Lisboa com o Largo do Machado. Dali eu organizava, sob a orientação daquela boa tia, tão amiga de Mamãe, minhas excursões ao centro da cidade para ver livrarias e outras atrações que nos eram permitidas, ouvir conferências de Alceu Amoroso Lima e Dom Helder na sede da Ação Católica (Rua México), ver o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor. Naquele tempo (1950), o Leblon era algo muito remoto, Ipanema apenas brotava e Copacabana, a Princesinha do Mar, era, para nós, um antro de perdição, com Luz del Fuego escondida lá longe, naquelas ilhas misteriosas que espreitam a orla.



         A TENTAÇÃO MINEIRA E O SOCORRO DE SANTO INÁCIO



Aproveitei a estada no Rio para ir conhecer a família de meu meio-irmão José Cabral, que morava em São José de Além Paraíba (MG), vizinha de Porto Novo, bem na divisa de Minas com o Estado do Rio. Foi muito bom. Fiquei conhecendo aquela meninada e a mulher dele, dona Iracema, uma figura a quem fiquei querendo muito bem. De tanto conviver com mineirinhas bonitas, surgiu um primeiro abalo na minha vocação. Tanto que, quando voltei para o Rio e São Leopoldo, estava praticamente decidido a deixar o seminário.

Mas os jesuítas têm um instrumento muito eficaz de busca e apreensão de almas indecisas ou rebeldes que se chama “Exercícios espirituais de Santo Inácio”. No retiro espiritual que se costumava fazer no início do ano letivo, terminei me reconvertendo à vocação que incluía o celibato como condição sine qua non, como diziam os escolásticos (sem a qual, não é possível). A ovelha quase desgarrada voltou ao aprisco.

Naquele fim de 1950, começo de 1951, Getúlio Vargas estava voltando ao poder pela força do povo. Os gaúchos muito entusiasmados. Leonel Brizola, muito jovem, era governador ou prefeito de Porto Alegre. Nós não participávamos muito, pois a política era mantida longe do seminário. Só Padre Racke, professor de matemática, falava em “ele voltará”, um dos lemas da campanha getulista. Outro era “bota o retrato do velho outra vez, bota no mesmo lugar”. Embora já tivesse 18 anos, não votei, nem tinha título, como, aliás, os outros.

Fui, com minha equipe, campeão de frontão ou pelota basca, um jogo muito interessante parecido com tênis, que só vi por lá. O exercício era ótimo para espantar o frio, no inverno. Depois, caía sob uma ducha gelada (fui conhecer banheiro quente na Europa), o que, segundo os mestres, era bom para esfriar as possíveis quenturas da carne. No fim do 2º ano, fui passar as férias em Santa Catarina, numa colônia alemã chamada São Ludgero, no município de Tubarão, perto de Braço do Norte. A viagem pelas serras gaúcha e catarinense foi um perigo. Chovia muito e o veículo que nos conduzia (nem lembro o que era) estava com o freio ruim. Para não cair em algum precipício, o ajudante do motorista se agarrava com o breque, que respondia resmungando. E a gente nem aí. Jovens e destemidos. Gostei muito dessas férias. Estava reconvertido, mas não deixava de lançar olhares admirativos para as alemãzinhas em flor (“à l’ombre des jeunes filles en fleur”, diria Proust). O vigário era o velho monsenhor Tombrock, alemão da Alemanha mesmo, ajudado por um coadjutor misturado de brasileira com alemão. Fiquei conhecendo também boa parte da Santa Catarina industrializada, Itajaí, Brusque. É um Estado maravilhoso.

Voltamos a São Leopoldo para o terceiro ano de filosofia. Foi um ano bem pesado devido a uma encrenca com um professor, padre José Kessler, que cismou que eu estava me encaminhando para posições errôneas (heréticas?) somente porque eu lia e apreciava autores como Jacques Maritain, Raïssa Maritain, Léon Bloy, Charles Péguy, Alceu Amoroso Lima, entre outros que lutavam por uma abertura na Igreja ainda presa aos cânones do Concílio de Trento. Haviam chegado, naquele ano de 1952, ao Seminário Central dois paulistas ligados à Tradição, Família e Propriedade (TFP), creio que para nos salvar de heresias. Esqueço os nomes deles. Propagaram por lá um jornal chamado Catolicismo, porta-voz de uma Igreja esclerosada. Padre Kessler tomou-se de amores por eles e, consequentemente, de desamores por mim, que não aceitava o catolicismo virado à paulista.

Em vez de levar a coisa na base de argumentos e convencimento, o pare declarou guerra a mim, que era praticamente o único a resistir à TFP com firmeza. Nas preleções que nos fazia, fazia verdadeiras catilinárias, sem dizer o meu nome, mas todo mundo sabia que eu era o “subversivo” em questão. Até hoje, meu amigo e colega daquela época Domício Coutinho (que mora há muito em Nova York e lá dirige uma sucursal da UBE e a associação Brazilian Endowment for the Arts), sempre que me telefona ou aparece por aqui, lembra logo o padre Kessler.

Creio que o reitor do Seminário, cujo nome me foge, que era um velhinho muito gente boa, comunicou essa situação a meu tio dom João Portocarrero Costa, pois, lá pela metade do ano letivo, ele decidiu me enviar para estudar em Roma, junto com José Freire (que mais tarde foi bispo de Mossoró). O nosso reitor polemizava com Érico Veríssimo nos jornais, mas era do bem e da paz. Ele mesmo se encarregou de nos levar a Porto Alegre para tirar passaporte e o visto no Consolato Generale d’Italia. Foram algumas viagens. A estrada de São Leopoldo à capital era excelente, já naquela época. O Rio Grande é um Estado de vanguarda.

Dei ainda um rolezinho pelo Nordeste pra me despedir de Mamãe e do resto do povo. Tinha um baião na época que não esqueço: “Oi a paia do coqueiro quando o vento dá / Oi o tombo da jangada nas onda do má” No começo de setembro estava no Rio de Janeiro, no Seminário do Rio Comprido, para pegar o navio pra Itália, um desses da Linea “C”, creio que o Conte Biancamano. O bicho balançava muito, pois naquele tempo ainda não tinham inventado o estabilizador. Muita gente sofrendo com enjoo, algo que nunca me atacou. Comecei a me acostumar com a cozinha italiana, que muito aprecio, apesar de calórica, mas na época não corria o risco de ficar bochudo. Passamos ao largo de Fernão de Noronha e embicamos para o Atlântico Norte. Todo animado com a minha internacionalização. Nos anos 1950, era muito pouco comum viajar para o exterior, seja por lazer ou por motivo de estudo.



          EU ACHAVA QUE ESTAVA ENTRANDO NA HISTÓRIA

                        (CONCEPÇÃO EUROCÊNTRICA)



No outono europeu de 1952, entrei na história, como a gente considerava naquela época, atravessando as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar). Não me lembro se foi no finzinho de setembro ou no começo de outubro de 1952 que o nosso navio adentrou o Mediterrâneo. Nevoeiro brabo e o bicho soltava sinistros apitos, creio que para evitar choques. Não se enxergava nada. Lembro bem que pensei comigo mesmo: estamos entrando na história. Pela formação que eu havia recebido, a Europa era o centro do mundo e a história da Europa era “a história” tout court, como dizem os franceses.

Pouco depois aportávamos em Nápoles, com direito àquela baía linda de viver, o Vesúvio, a ilha de Capri. Inumeráveis navios de guerra estadunidenses, pois na época a Itália era praticamente um protetorado americano, para evitar que o Partido Comunista tomasse o poder, mesmo que através de eleições. Democrazia, però non tropo. O PCI era forte eleitoralmente, além de ter uma grande quantidade de armas escondidas, do tempo em que era tolerado por sua decisiva participação entre os partiggiani, os guerrilheiros que combateram primeiro os fascistas de Mussolini e, depois que os alemães invadiram a Itália já livre do ditador, ajudaram os aliados a avançar pela bota (formato do mapa da península) acima.

Fomos de ônibus para Roma, onde moraríamos no Colégio Pio Brasileiro e estudaríamos na multissecular Universidade Gregoriana, ambas as instituições dirigidas por jesuítas. Eu já estava acostumado com eles nos três anos passados em São Leopoldo. Tenho grande admiração por essa ordem, devido ao seu grande preparo espiritual e intelectual. Apesar de quase ter sido despachado do seminário no Rio Grande por um padre ultrarreacionário, fã de uma organização chamada Tradição, Família e Propriedade, que defendia uma Igreja em moldes medievais. Chegamos em Roma já noite. Incrível como, apenas sete anos após o fim da guerra, o país funcionava muito bem: transportes bons e com horários respeitados, boa iluminação, limpeza, uma correta concepção de urbanização.

No dia seguinte, aproveitando que o ano letivo ainda não havia começado (na Europa, nos Estados Unidos, as aulas começam no outono), lá fomos conhecer as infindáveis atrações da Cidade Eterna. Até hoje ainda me falta muito para poder dizer que a conheço, mas conheci um bocado: desde a Via Aurélia (a Nova, paralela ao início da Antiga, que levava de Roma à Gália), onde está o Colégio Brasileiro, até o começo da Via Ápia, que levava ao sul da península, e onde estão as Catacumbas, lugar sagrado para o cristianismo. Por ali também as Fosse Ardeatine, onde um acachapante monumento lembra o massacre de centenas de italianos, pegados aleatoriamente nas ruas pelos alemães para vingar a morte de alguns soldados invasores. Uma laje imensa cobre os túmulos dos italianos mortos pouco antes de os alemães deixarem Roma. Esta foi declarada “cidade aberta” através de um acordo mediado pelo papa Pio 12, muito ouvido pelos alemães. A laje de concreto parece que está esmagando os mortos.

Outros monumentos impressionantes: aquelas ruínas todas do Império Romano, como Via dei Fori Imperiali, Passeggiata Archeologica, Coliseu etc. E os cristãos, como a Praça de São Pedro com a basílica, Castel Sant’Angelo, Santa Maria Maggiore, San Paolo Fuori le Mura (ali perto fica Tre Fontane, onde São Paulo teria sido decapitado e onde há um mosteiro trapista). E também Cinecittà, a Hollywood italiana. Sem esquecer as outras, centenas, de igrejas; parece a Bahia de São Salvador.

As principais matérias na universidade eram teologia dogmática e moral. Seis meses de hebraico com Padre Bernini; mal aprendi o alfabeto). Ficava (continua lá) na Piazza della Pilota, no final de uma rua chamada Via dele Botteghe Oscure (que saía da Piazza Venezia), por onde sempre passávamos pela sede do jornal comunista L’Unità. A gente pegava logo cedo um ônibus com placa SCV (Stato della Città del Vaticano) e passava a manhã na Gregoriana. Eram uns ônibus militares velhos, mas ainda robustos, que os americanos haviam dado de presente ao Vaticano. Os motoristas romanos são uma loucura, correm muito e fazem incríveis manobras. Dificilmente trombam. O nosso motorista era um cabra gordo, comedor de massa, e não fazia exceção. Quando chegava à entrada do Colégio Brasileiro, um portão não tão largo assim, ele entrava na mesma velocidade em que vinha pela rua, fazendo uma perigosa curva. Nunca bateu.

Na universidade, as aulas eram em latim (favas contadas para quem estudava a língua de Virgílio desde os onze anos), pois havia estudantes do mundo inteiro, das Américas, da Europa, da Ásia, da África e Oceania. O latim era uma espécie de língua comum. O nosso professor de teologia moral era um americano que falava um latim muito original, pronunciado como se inglês fosse. Mas, como ele falava devagar, dava para entender por quem tinha noções da arrevesada pronúncia da língua de Shakespeare.




                UMA FRUSTRADA EXPERIÊNCIA MONÁSTICA



Eu acredito que tinha real vocação para ser padre, incluindo o compromisso do celibato, tinha a respectiva graça, aquele carisma que Deus nos dá. Mas também pode tirar. E nesse primeiro ano do curso de teologia em Roma, fui assaltado pelo medo do compromisso. Seria capaz de cumprir o voto de castidade por toda a vida? Naquela época eu ainda não distinguia Igreja de Vaticano (dos diversos “vaticanos”) e acreditava que o padre tinha mesmo de abster-se de sexo para poder melhor exercer seu ministério. Também não havia ainda a dispensa dos votos para quem pedisse (o cara é dispensado do voto de castidade, mas, em contrapartida, não pode mais exercer o ministério sacerdotal; não dá para entender). Foi também após aquela minha época de seminário que, a partir dos anos 90, começaram a pipocar por todo lado os casos de padres que acham que voto de castidade significa apenas não se relacionar sexualmente com mulher. Abusar sexualmente de crianças e adolescentes pode. Pode?!

Eu gostava de visitar a igreja de Santa Sabina (uma das estações litúrgicas da Quaresma), no Aventino, que tinha um convento dominicano. E também o mosteiro de San Girolamo (São Jerônimo), perto do Colégio Brasileiro, na Via Aurelia Antica, onde monges beneditinos estudavam a traduziam a Bíblia do hebraico e do grego. Gostava daquela paz, daquela tranquilidade e comecei a pensar como seria mais fácil e seguro enfrentar uma vida sob voto de castidade num ambiente assim. Com o tempo, fui assaltado pelo temor de não conseguir ser um bom padre e cumprir o juramento.

Na ocasião, acreditei que a saída seria buscar uma maior segurança em um mosteiro, tornar-me monge, teoricamente sem muita relação com o mundo, sobretudo com o mulherio, esses entes maravilhosos, transformados em demonium meridianum pelas ideias homossexualóides infundadas de um clero desgarrado do Evangelho de Jesus Cristo. Do meu quarto no Colégio Brasileiro, eu avistava a silhueta do mosteiro de San Girolamo. Comecei a frequentá-lo mais e decidi me tornar monge, para ter mais segurança quanto ao cumprimento de meu voto de castidade. No fim do ano letivo europeu (verão de 1953), voltei ao Brasil, fiz o noviciado em Olinda e, em outubro de 1954, fazia os votos provisórios (por três anos) como projeto de monge.

Então, fui remetido de volta a Roma, onde os beneditinos têm uma universidade na colina do Aventino chamada Pontificium Atheneum Anselmianum (em homenagem ao monge inglês Santo Anselmo), que congrega, como a Gregoriana, alunos do mundo inteiro. Fica na Via di Porta Lavernale 19, perto de Santa Sabina. Os beneditinos são uma ordem descentralizada, cada mosteiro conservando bastante autonomia. A partir de outubro de 1954, estava eu ali fazendo o 2º ano do curso de teologia. Novos professores; preparação para o bacharelado. A abadia de Santo Anselmo, que é uma espécie de casa geral dos beneditinos (que não conhecem tal instituição), é muito bem instalada no alto da colina, com uma igreja linda em mármore de Carrara. Fui descobrindo, aliás desde Olinda, que uma comunidade monástica pode ter muito faz-de-conta de fraternidade, companheirismo, dedicação à contemplação das obras produzidas pela fé, a esperança e a caridade (esta no sentido de amor espiritual, graça e não no sentido corrente deturpado de esmola, peninha).

Um pequeno exemplo disso é que durante muito tempo fiquei calado durante as refeições (às vezes, era permitido falar, outras vezes se fazia a leitura de um livro) porque os vizinhos falavam o tempo todo em alemão, nem tomavam conhecimento da minha presença. Espero que sem nenhum laivo de nazismo, por eu ser de “raça inferior”. Felizmente, apareceu um estudante francês que sentava a meu lado e, assim, podíamos conversar nessa língua maravilhosa. A colocação nos ofícios litúrgicos e à mesa obedece à antiguidade na ordem. Uma coisa de que eu gostava muito era do ofício divino (as horas canônicas) e do canto gregoriano. Até hoje escuto o chamado canto chão sempre que posso. Há belas gravações dos mosteiros de Maria-Laach (Alemanha), Solesmes (França), Montserrat (Catalunha) e de outros. Fora esses prazeres artístico-espirituais, acredito hoje que o monaquismo é um contrabando introduzido no cristianismo sob influência de outras religiões. Jesus Cristo, Maria, os apóstolos e primitivos cristãos viviam no meio do povo, em contato com santos e pecadores.




POR ROMA (ITÁLIA), DISENTIS (SUÍÇA), MAREDSOUS (BÉLGICA)



No fim do ano letivo de 1954/1955 (o ano letivo na Europa, como nos Estados Unidos e no Hemisfério Norte em geral, vai do outono de um ano ao verão do ano seguinte), fui passar férias em um mosteiro beneditino na Suíça, Disentis, no cantão de Graubünden, ou Grisons, ou Grigioni, ou Grijuns, pois o país tem quatro línguas. Fica lá perto da fronteira com a Áustria, onde tem um resquício de uma colônia do Império Romano em que se fala uma língua neolatina estranha, como acontece com o romeno, que eles chamam “romantsch”. Nas missas, a pregação era nessa língua e eu não entendia nada. Se fosse em alemão, língua também falada naquele cantão, conseguiria entender um pouco, mas muito pouco. Aprendi alguma coisa no Rio Grande, onde naquela época, no interior, ainda encontrei quem não falasse português.

São três meses de férias escolares no verão. Foi divertido. Escalamos montanhas e ficamos conhecendo muito daquelas belas paisagens da Suíça. Passeamos pelo cantão do Ticino, onde se fala italiano. Eu, que sempre gostei de jornal, lia na biblioteca La Liberté, um jornal da parte do país que fala francês (Suisse Romande). Aprendi esse gosto de ler jornal com meu pai, que, do engenho, mandava buscar jornais em Tapera (hoje Bonança), deixados pelo trem que vinha do Recife. Naquele tempo, havia aqui no Recife um monte de jornais: além dos remanescentes Jornal do Commercio e Diario de Pernambuco, tinha Folha da Manhã, Jornal Pequeno, Diário da Noite e mais alguns.

Foi lendo La Liberté que fiquei sabendo da deposição de Perón na Argentina. Por trás, o dedo dos Estados Unidos, pois o marido de Evita não era nenhum santo, mas era nacionalista. Eu não desconfiava disso naquela época, embora já tivesse minhas tendências “esquerdejosas” (como diz Carol Fernandes). Tanto tinha que, junto com um colega brasileiro, descobri um rádio perdido numa sala e conseguimos escutar alguma coisa do Festival Mundial da Juventude, uma promoção periódica dos países comunistas. Naquele ano, foi em Varsóvia. Eu não havia descoberto ainda que o cristianismo é uma forma religiosa de socialismo. Não certamente o cristianismo das Cruzadas, da exploração da escravatura, da Inquisição. Mas, com certeza, o cristianismo descrito no livro dos Atos dos Apóstolos (muito admirado por Engels que, com Marx, escreveu o Manifesto Comunista).

Mas as férias e o verão chegaram ao fim e lá estávamos de novo em Roma para o início de mais um ano letivo (1955-56), com novas matérias para completar o bacharelado. Mas, como sempre, não eram somente estudos. Andávamos muito pela assim dita Cidade Eterna, que fiquei conhecendo razoavelmente. De vez em quando, eu ia ao Colégio Pio Brasileiro rever amigos. Íamos também frequentemente a São Padro, para as aparições e falas do papa (Pio 12). Naquela época, eu ainda acreditava que o papa era o indiscutível proprietário da Igreja, infalível e tudo o mais que nos ensinavam, sozinho acima dos bispos que formam o Colégio Apostólico .Numa dessas idas a São Pedro, vimos o chanceler da RFA Konrad Adenauer ali pro lado da Pietà. Não notamos nenhum dispositivo de segurança. Bons tempos. E afinal chega mais um verão. Férias de novo para enfrentar com forças a licenciatura em teologia, último ano do curso naquela época.

Daquela vez, minhas férias, de julho a setembro de 1956, foram no mosteiro de Maredsous, na Bélgica francófona (província de Namur). Como eu já falava bem francês, podia me comunicar muito melhor com os colegas do que na Suíça. Ficamos sob a responsabilidade direta de uma figura sensacional, Père Ephrem, que dirigia os noviços e a turma mais jovem. Foi com ele que despertei para a possibilidade de um monaquismo muito menos formal e de mais conteúdo, ao contrário do estilo burocrático e vazio que havia encontrado até então. E, paralelamente, para um cristianismo espelhado na prática que a gente só conhece através da leitura dos Atos dos Apóstolos; que pouco tem a ver com o que se tornou instituição pouco depois, com papado, patriarcados et caterva. Foi lá também que fui apresentado à coleção de histórias em quadrinhos de Tintin. Maravilha; apesar de umas tinturas de racismo. Mas Monteiro Lobato também é racista e Nelson Rodrigues um reacionário empedernido, e nem por isso deixam de ser grandes escritores.

Passei essas férias ali com o monge brasileiro dom Ambrósio, que já tinha sido ordenado padre (algo que não é essencial à vida monástica). No ano letivo seguinte, Père Ephrem iria, com os pupilos dele, para Lyon, na França, onde se ministrava um ensino de teologia bem avançado, ao contrário do ensino de Roma, ali nas sacras barbas do papa. Ele nos convidou para ir também fazer lá a licenciatura em teologia. Consultamos nossos superiores, que felizmente deram permissão.



       UM ANO LETIVO EM LYON, NO CORAÇÃO DA FRANÇA



Lembro que voltei a Roma para pegar coisas que deixara lá e me despedir dos colegas. É muito fácil viajar pela Europa (mesmo naquela época de pós-guerra). As ferrovias são integradas e você pode pegar um trem em Roma, por exemplo, atravessar a Suíça, entrar na Alemanha, na França, às vezes sem precisar de conexões. Mas, para economizar, a gente andava muito de carona, o popular auto stop. Ia para a estrada, sinalizava a direção que estava pretendendo e ganhava o mundo. De terrorismo, na época, só se conhecia o bombardeio atômico estadunidense de Hiroshima e Nagasaki, cerca de uma década antes. Nessa viagem a Roma, fui de auto stop de Bruxelas até o sul da França. Já era noite e peguei um trem atravessando extenso túnel, o Simplon, por baixo dos Alpes e saindo perto de Turim. No dia seguinte, de trem para Roma.

De Roma fui para Lyon de trem, onde já encontrei a turma belga. A gente se hospedava em um grande convento franciscano (lá não há mosteiro beneditino) em Fourvière (14, Rue Roger Radisson, homenagem a um herói da Resistência), uma colina onde há um teatro de arena romano e um grande santuário de Nossa Senhora. O nome Fourvière deriva do latim Forum Vetus (fórum antigo). A romana Lugdunum é uma cidade grande, misteriosa, berço da culinária francesa e terra de Allan Kardec, que codificou o espiritismo. É também a diocese mais antiga da França. Bem diferente de Paris, um povo mais reservado. É cortada por dois rios. Os franceses têm rios masculinos e femininos. Lá o rio Rhône (Ródano, macho) se encontra com o Saone (Saona, fêmea) e fazem um casamento de muitas águas. O Rhône vem da Suiça e desce até Marselha, onde fica a sua foz (Bouches du Rhône, nome do respectivo departamento; o país é dividido em departamentos).

Iniciamos o ano letivo coincidindo com o levante da Hungria contra o domínio soviético (1956). Na Faculté de Théologie de Lyon, as aulas não eram em latim, como em Roma, mas em francês. S’il vous plaît. A missa, naqueles tempos pré-conciliares, ainda era em latim. Mas na capelinha que improvisamos naquele imenso convento, onde havia espaço sobrando, nossa missa era em francês mesmo, antecipando em alguns anos a liberação das assim ditas línguas vulgares para o culto divino. Depois do café, descíamos de Fourvière por uma imensa escadaria, até a Place Bellecourt, onde termina a Rue du Plat. Nessa rua ficava a sede das Facultés Catholiques. A gente podia também descer e subir por um funicular (popularmente chamado de ficelle, cordão). Na subida ou descida, a gente via uma quantidade de mocinhas, alunas de um lycée (ensino médio) que ficava lá em baixo. Um encanto. A francesa é muito elegante e charmosa no trajar, mesmo quando não é bonita. Mas, naquele tempo, eu não podia me deter muito nessas visões. Uma grande bobagem essa segregação, que nos impedia de ter a visão beatífica aqui na Terra mesmo.

Estávamos em plena guerra de libertação da Argélia. Muitas manifestações contra, de jovens que não queriam ir pra lá quebrar o pescoço por uma causa perdida. Um convocado, Jean-Jacques Servan-Schreiber, que serviu lá como tenente, escreveu, ao voltar, um livro de grande impacto, Lieutenant en Algérie (Tenente na Argélia), no qual falava abertamente sobre a tortura ali como arma habitual de guerra. Método denunciado também pelo jornal Le Monde e por revistas como Esprit. Quando voltei para o Brasil, fiz uma assinatura da revista e lia Le Monde no Consulado da França, franqueado pela grande figura que foi o cônsul Marcel Morin. Mal imaginava eu que sete anos depois o Brasil estaria submetendo “subversivos” a tortura e assassinato.

O que apreciei mais na faculdade foram as aulas de Sagrada Escritura. Fui apresentado aos manuscritos descobertos em Qumran, perto do Mar Morto, que haviam trazido muitas luzes à religiosidade judaica pré-cristã e à compreensão da Bíblia. Também fomos ensinados que há uma boa parte do Antigo Testamento sob forma mitológica (o que não significa que se trata de lendas ou ficções, mas de uma maneira peculiar pré-histórica de contar a história). A criação, o Jardim do Éden, o dilúvio são narrações mitológicas da história, que se repetem em várias outras culturas. O primeiro personagem bíblico historicamente datado é Abraão, que não era judeu, mas um caldeu que migrou para oeste e criou o povo e a religião judaicos. É o Pai Abraão de judeus, muçulmanos e cristãos. Irmãos que brigam tanto. Por quê?

Tudo isso foi abrindo minha cabeça enchida por muitos anos de ciência conservadora e não comprovada. E então voltaram aquelas minhas dúvidas sobre o futuro como padre ou monge. Como já falei, fiz uma opção pela vida monástica em 1953, temeroso de minha capacidade e da continuação do necessário carisma (graça). Não queria assumir compromissos como o voto de castidade e não poder cumpri-los. Antes de fazer votos perpétuos, chamados de solenes, o candidato a monge faz votos simples por três anos. Meus três anos se concluiriam no fim daquele 1957. Estávamos em junho. Terminava o ano letivo 1956-57, com a minha licenciatura em teologia e o começo das férias de verão. Desde que me instalara em Lyon, com a turma de Père Ephrem, em outubro de 1956, minha cabeça passara por grandes transformações. Eu já não acreditava muito na “romanidade” da Igreja, que aliás não consta no Credo de Niceia, onde se fala somente das notas “unam, sanctam, catholicam et apostolicam Ecclesiam” (catholica, do grego katholiké, significando “universal”).

Participava da liturgia em francês, sem me preocupar com o veto do Vaticano a uma prática tão simples e normal (Jesus Cristo falava latim? Os livros do Novo Testamento foram escritos em latim?). Como diz Reginaldo Veloso, há uma transgressão que é boa, abre caminhos novos, sacode a poeira. O jesuíta padre Gélineau compusera melodias para os salmos, bonitas e singelas, semelhantes a um canto gregoriano do século 20. Essa rebeldia anti-Vaticano, muito comum na Igreja francesa, foi para mim o ponto de partida de uma revisão em minhas convicções que me levou a questionar novamente minha vocação religiosa e sacerdotal. Père Ephrem, a quem devo o melhor de minha formação na fé, acreditava que aquilo era uma crise passageira.



DE LYON A PARIS. DE PARIS AOS DOLOMITI. DE GÊNOVA                                              AO BRASIL



Eu havia concluído minha graduação em teologia com a licenciatura nas Facultés Catholiques de Lyon. Père Ephem e seus pupilos, inclusive o brasileiro dom Ambrósio, voltaram para Maredsous e me deixaram em Paris, de onde eu iria para Itália pegar um navio de volta ao Brasil. Fiquei alguns dias no mosteiro beneditino da Rue de la Source, no 16e arrondissement, fiz uns passeios, fui a Chartres, ali perto, conhecer uma das mais belas catedrais góticas. Paris é realmente a capital do mundo, em luzes, beleza, arquitetura, urbanismo, cultura, arte. Eu já tinha passado por lá outras vezes e já conhecia muita coisa. A caminho da Itália, dei uma parada em Lyon e fui visitar um senhor amigo de Ephrem (esqueço seu nome), que tinha uns cinco filhos adotivos que criava como seus. Na França, além de similares da Febem daqui, é possível um casal pegar menores e levar para casa para educá-los, recebendo um subsídio do Estado. Acredito que é muito melhor para eles do que ficar em confinamento.

De Lyon fui para os Dolomiti (Fiera di Primiero, perto de Cortina d’Ampezzo) participar de uma reunião anual de um movimento de leigos nascido em torno de Chiara Lubich, Focolari de l’Unità. Era algo muito interessante na época, quando ainda guardava uma certa distância das regrinhas castradoras do Vaticano. Muito interessante a estada lá. O lugar é belíssimo. Creio que faz parte do Trentino, região de Trento, no extremo norte da Itália, que já pertenceu à Áustria. A essa altura, eu já estava decidido a não renovar os votos fazendo a profissão solene e virando monge, e também a não voltar ao clero diocesano. Já era uma decisão firme e inarredável.

Dali fui para Gênova, onde embarquei de volta ao Brasil. Se eu pudesse antever o futuro, não teria deixado a Europa, onde me acostumara a viver dentro de uma organização bem razoável, com serviços públicos muito bons, inclusive transporte (sem precisar de automóvel particular). Isso, apesar deter morado lá de 1952 a 1957, cerca de apenas uma década depois do final da guerra. Havia muita pobreza na Itália e em outros países. A Itália se revoltara contra o regime fascista e derrubara Mussolini, mas fora invadida pelos alemães e, no fim, pelos aliados.

Com medo do avanço do comunismo, muito favorecido pelo papel da União Soviética na vitória contra Hitler, a Europa ocidental adotou o que se convencionou chamar de Welfare State (Estado de Bem-Estar), com governos que buscavam atender às necessidades dos menos favorecidos. Na Itália, as forças dos Estados Unidos e o Vaticano haviam imposto uma maioria à assim dita Democrazia Cristiana (DC), impedindo a ascensão do PCI, que sempre foi forte ali devido a sua liderança da luta de resistência dos partigiani contra o domínio fascista e depois nazista. A DC de cristã não tinha quase nada e se apoiava na rede social e no terror das máfias, além de contar com a vigilância ostensiva de navios de guerra americanos nos principais portos da península. Era comum, durante as campanhas eleitorais, ver  barracas de propaganda e comitês do PCI atacados pela polícia.

Como eu ia dizendo, eu não deveria ter voltado para o Brasil, ao menos naquela ocasião. Teria continuado os estudos, feito uma pós-graduação. Tinha contatos. Poderia ter obtido uma bolsa, quem sabe um trabalho em um organismo internacional. Certamente não teria sido atropelado pelo golpe militar de 1964, que tanto atrasou o nosso país e a minha vida. É aquela velha história de que o “natural” seria voltar. A propósito, lembro a pergunta de um médico alemão a meu amigo e companheiro de política estudantil Fernando Barbosa, casado com a professora Socorro Ferraz. Ela passou maus momentos depois do golpe e terminou obtendo uma bolsa para a Universidade de Bielefeld (Alemanha). Fernando foi como digamos “príncipe consorte”. Médico, conseguiu lá um emprego nessa área. Quando eles ouviram falar que a ditadura estava se derretendo, decidiram voltar. Quando ele foi dizer ao diretor do hospital onde trabalhava que iam voltar, ele falou: Herr Doktor Barbosa, o que é que o senhor vai fazer no Brasil? Uma pergunta que poderia e deveria ter feito a mim mesmo naquele verão de 1957.




                      UMA VOLTA PREMATURA AO BRASIL





Finda a temporada nos Dolomiti, era a hora de ir para Gênova pegar um navio. Estávamos de julho para agosto, pleno verão europeu. Dali a dois meses terminariam os três anos de meus votos simples. Pensando com a cabeça de hoje, eu poderia ter procurado meus amigos belgas, por exemplo, e passar em Maredsous o pouco tempo restante de meu compromisso monástico. Estou certo de que Père Ephrem, meu guru e uma pessoa com quem eu me entendia muito bem, não deixaria de me ajudar, contando com gente importante ligada àquele mosteiro. Poderia ter procurado emprego na Rádio Vaticano, que tem transmissões em português; na RTF (Radiodiffusion Télévision Française), que também tem um ramo internacional; quem sabe na BBC (British Broadcasting Corporation), embora tivesse que aperfeiçoar meu inglês, o que não seria difícil. Ao mesmo tempo, seja onde fosse, buscaria prosseguir meus estudos.

Poderia ainda interessar algum jornal brasileiro através de minhas relações, pra enviar matérias de lá. Naquele tempo, não havia essa história de curso de jornalismo. Bastava você ter uma cultura geral, tino de repórter e saber escrever. Aliás, acredito que curso de jornalismo não faz sentido. A gente aprende no jornal, rádio etc. Uma cultura geral é certamente indispensável. Uma pós-graduação na área é razoável, como ocorre nos EUA. Naquela época, aqui no Recife, os grandes jornalistas eram professores da Faculdade de Direito e do Ginásio Pernambucano.

Um cabra que conheci depois e se tornou muito meu amigo, Irineu Guimarães, é que agiu certo. Só voltou pra cá depois de obter emprego no Le Monde e na France Presse. Era cearense mas foi para o Rio. Ficou nesses postos até o segundo golpe, em 1968, quando perdeu os empregos por ausência. Vivia com uma malinha à mão esperando “convite” para a Ilha Grande, central de presos políticos. Quando a milicagem alvoroçada o esqueceu, foi pedir emprego a Roberto Marinho, n’ O Globo, e este lhe falou que já estava com sua quota de “comunistas” completa, mas deu-lhe um bilhete de recomendação pra Adolpho Bloch. Irineu passou um bom tempo na Manchete.

Voltei pro Brasil e pouco depois deixei a vida clerical. Coincidentemente, a União Soviética dava um pulo à frente dos Estados Unidos lançando o Sputnik, primeiro satélite artificial. Vibrei, pois, como já disse, sempre fui um socialista com inspiração nos Atos dos Apóstolos. Primeira questão, morar onde, com quem? Uma preocupação completamente alheia a mim (desde sempre resolvida) no paraíso perdido do engenho Bateria, no tempo de escola em Vitória, no velho Seminário de Olinda e até meus 25 anos de idade. Mamãe aceitava mal minha decisão e continuava morando com meu tio bispo. Não me ocorreu que este certamente não veria com bons olhos aquele sobrinho tão bem comportado solto aí no mundo.

E trabalho? Não me era fácil arranjar um emprego. Minha licenciatura em teologia só me dava direito a ensinar nessa área e conexas. Onde? Além disso, quando a pessoa está na faculdade aqui, vai criando uma série de conexões que dão possibilidades de trabalho, com professores, em estágios e por aí. Vai se entrosando com o tal de mercado de trabalho ainda na fase de estudante. Não era o meu caso. Procurei fazer um curso, mesmo porque naquele tempo, por aqui, toda pessoa de um certo nível tinha de virar “doutor”, o que não existe na Europa. Eu sempre fui atraído pela política; não necessariamente partidária. Na Europa, como estrangeiro, eu não podia participar da vida política. Tinha vontade de ver como era ter uma participação na luta por uma sociedade mais justa. Tanto que fiz vestibular para direito, apesar de estar de saco cheio de quatro anos de direito canônico. Só para fazer política estudantil, que era animadíssima naqueles tempos pré-golpe. Fiz também para ciências sociais. Não terminei nenhum dos dois cursos.

Além de tudo, eu pouco conhecia o Recife, pois vivera muito tempo por aí afora, em “Oropa, França e Bahia” (como diria Ascenso Ferreira), trocando “Bahia” por Rio Grande, o do Norte e o do Sul. O primeiro emprego decente que consegui foi através do folclórico cônsul da França em Pernambuco, Marcel Morin. Uma figura que se aclimatou tanto por aqui que ganhou o nome de Marcelo Amorim. Eu frequentava o Consulado para filar o jornal Le Monde, que me acostumara a ler lá nas Gálias, e terminei fazendo amizade com ele, um antigo partisan na Resistência Francesa durante a guerra. Morin era um apaixonado pelo Recife, pelo nosso Carnaval, pelas mulatas, sócio e frequentador do Inocentes do Rosarinho (ou seria o Madeiras?). Depois do golpe, os militares pediram sua saída daqui, pois ele era ligado a muita gente do lado da esquerda. A última vez que o vi, muito tempo depois, foi na sua última passagem por aqui antes de morrer, em um acerto do Bloco da Saudade.

Aí por volta de 1960, veio trabalhar no Recife um professor francês de medicina, Gauthier-Lafaye, para implantar o ensino da anestesiologia. Precisava de um tradutor e Morin logo se lembrou de mim. Fui contratado pela então Universidade do Recife (hoje UFPE) e trabalhei com o mestre durante uns dois anos no Hospital Pedro 2º, onde funcionava o Hospital das Clínicas antes de se mudar para o campus da universidade. Quando ele foi embora, pedi transferência para o Serviço de Extensão Cultural, criado por Paulo Freire para aperfeiçoar e aplicar seu sistema de educação de adultos. Depois de punido pelos golpistas, ele criou fama mundial. Naquela época, não havia concurso para a universidade (a não ser para catedrático e livre docente). Depois que entrava, o cabra só saía se quisesse (ou fosse demitido pelos golpistas, como aconteceu comigo).

Antes, fiz parte dos que constituíram o Movimento de Cultura Popular (MCP, invadido e saqueado no golpe), quando Miguel Arraes era prefeito do Recife. Foi lá que fiquei conhecendo Paulo Freire, grande figura humana e educador nato. Também Paulo Rosas, que morreu muito cedo, numa hora em que ainda poderia produzir muito. Outro educador de primeira linha. Também gente nova que, mais tarde, se tornou famosa, como José Wilker, Aguinaldo Silva, Teca Calazans. A liderança era de Germano Coelho, extremamente centralizador e incapaz de delegar tarefas. Quando Paulo Freire, incentivado por seu amigo o reitor João Alfredo da Costa Lima, decidiu criar o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, fui com ele. No MCP, o grande pedagogo era desprestigiado.
Quando trabalhava com Lafaye, conheci muita gente boa, como o professor Romero Marques, grande figura, médicos que trabalhavam com ele ou se especializavam em anestesiologia, como Edvaldo Teles, Newbe Victor, Ernani Melo, Valêncio Coelho, entre outros (depois de 50 anos, a memória não alcança tudo). O professor francês conseguiu enviar alguns para se especializar lá na terra dele.



              POLÍTICA, UNIVERSIDADE, EFERVESCÊNCIA NO RECIFE

Volto ao tema de meu primeiro emprego decente, pois vale a pena ver como uma certa política dentro da universidade pode se colocar contra os interesses de mestres e alunos, do próprio objetivo da instituição que é ensinar e pesquisar. Fui contratado pela Universidade do Recife (hoje UFPE) para trabalhar como intérprete e tradutor para o professor de medicina francês Gauthier-Lafaye, que viera implantar aqui o ensino da anestesiologia. Como eu me relacionava bem com o cônsul da França, Marcel Morin, ele me indicou atendendo a um pedido da universidade. Havia muito desentendimento entre os professores. Alguns não aprovavam esse ensino mais avançado da anestesiologia, por ter sido iniciativa do grupo liderado pelo professor Romero Marques, uma das figuras mais legais que tive oportunidade de conhecer, conceituado profissional e um autêntico humanista no interesse intelectual e no trato social.
O fato é que o prof. Lafaye não conseguiu realizar o que planejara, mas conseguiu enviar para estudos na França vários anestesistas ligados à clínica do prof. Romero Marques. O Hospital das Clínicas funcionava então (começo dos anos 1960) no Hospital Pedro II, ainda bem conservado. A histórica edificação sofreu longo abandono depois que foi inaugurado o Hospital das Clínicas no campus da UFPE, mas hoje está restaurado e é operado pelo Imip. É uma construção bem antiga e bonita. Apesar de toda a sua competência e dos esforços que empreendeu para cumprir o objetivo que o trouxera ao Brasil, o prof. Lafaye teve de bater em retirada depois de uns dois anos de luta. Naquela época, o catedrático de uma disciplina era uma espécie de rainha da Inglaterra e a política universitária se dividia em dois blocos antagônicos e irreconciliáveis. Os que se opunham ao prof. Romero Marques sabotaram de toda maneira possível a implantação de um ensino mais avançado da anestesiologia.
Enquanto isso, eu fazia política na universidade. Para tanto, fiz vestibular para as faculdades de Direito e de Filosofia de Pernambuco. Esta funcionava no local onde fora o Grupo Escolar Frei Caneca, que eu frequentei durante algum tempo quando criança, numa época em que educação pública era coisa séria, com professoras como Maria Rocha, Maria José Baltar, Anita Paes Barreto (as que eu lembro). Frequentar mesmo as aulas nas faculdades fiz pouco, pois eu queria mesmo era fazer política estudantil e política em geral. Aproximei-me do PCB (o Partidão), através da UJC (União da Juventude Comunista). Eram os tempos liberais e dinâmicos de JK. O PCB continuava proscrito desde 1947, quando, obediente aos ditames estadunidenses na Guerra Fria, o Supremo Tribunal Federal havia cassado seu registro e os mandatos de dezenas de deputados, senadores e vereadores eleitos em 1945. Mas seu funcionamento era amplamente tolerado e comunistas eram eleitos por outras legendas.
O Partidão teve grande importância nas eleições de Cid Sampaio, em 1958, para governador; de Miguel Arraes, em 1960, para prefeito do Recife, e em 1962, para governador do Estado. Enfim, em todas as eleições após a criação da Frente do Recife, antes que os golpistas cumprissem os desígnios do bondoso Tio Sam. Os golpistas a serviço da Casa-Grande vinham preparando o bote desde 1954 (quando “suicidaram” Getúlio), passando por 1955 (tentativa de impedir a posse de JK) e 1961 (tentativas de golpe de Jânio e de parte dos militares). Dez anos mais tarde, conseguiram finalmente derrubar o presidente constitucional, João Goulart, e implantar uma ditadura sanguinária que durou 21 anos e deixou sequelas que continuam aí até hoje. Ao contrário dos vizinhos Uruguai, Argentina e Chile, não se passa a limpo toda a imundície assassina de desequilibrados e seus mentores. Não se trata de vingança e sem de justiça, para que não ocorra de novo.
Participei ativamente de todas as campanhas pela consolidação da democracia e conheci gente da melhor qualidade, como Gregório  Bezerra, Davi Capristano, Abelardo da Hora, Hiram Pereira (Davi e Hiram são desaparecidos da ditadura, crime devidamente “anistiado”, com anistia confirmada pelo ínclito STF). Na companhia de outros cristãos, mesmo católicos, nunca vi incompatibilidade entre socialismo/comunismo (não stalinismo, prepotência, estatismo passando por socialismo) e cristianismo. Engels tinha admiração pelo livro do Novo Testamento chamado de Atos dos Apóstolos, que conta a vida das primeiras comunidades cristãs e como eles punham tudo em comum e repartiam conforme as necessidades de cada um (isso é mais que socialismo, é comunismo cristão).
Os desentendimentos históricos entre os que empunharam e empunham as bandeiras libertárias, igualitárias, comunitárias, fraternais, na teoria e na prática, e religiosos de variadas denominações e credos, essas desavenças se devem ao conservadorismo, e mesmo reacionarismo, que caracterizam as cúpulas religiosas, ao exclusivismo que exigem como se a adoção de religiões fosse obrigatória para todas as pessoas, todas as culturas e povos; e, por outro lado, à formulação das teorias socialistas mais consistentes ao abrigo do materialismo dialético e histórico e do ateísmo militante.
O tempo se encarregou de diluir arestas. Na União Soviética, após inevitáveis brigas, Lênin e Stálin se entenderam muito bem com o “vaticano” (cúpula de poder) da Igreja Ortodoxa Russa, que, como o Vaticano de Roma e outros, se dá bem com qualquer poder, seja tzarista, comunista, capitalista ou putinista. Exceção ocorre, desde o ano passado, com a eleição do papa Francisco em Roma, mas, mesmo ali, o Vaticano e sua Cúria Romana continuam com poderes que poderão neutralizar a volta a Cristo da Igreja de Roma. Em Cuba, depois de atitudes anticlericais nos anos 1960, governo e Igreja Católica se entendem bem atualmente, e um papa (João Paulo 2º) até fez uma visita oficial à ilha. Nos primeiros dias da Revolução, porém, diante da resistência de padres reacionários (maioria espanhola) em aceitar as mudanças, cunhou-se o famoso slogan “Que los curas corten caña o que vayan para España”. Hoje, a maioria dos partidos comunistas e socialistas (ou que se apresentam como tais) aceitam também pessoas religiosas em seus quadros e não exigem nem pregam o ateísmo.



DIFÍCIL PASSAGEM PARA A VIDA CIVIL



É muito difícil uma pessoa se adaptar a uma vida, digamos, normal, comum no meio do mundo depois de passar mais de dez anos em seminário ou mosteiro. Esse longo tempo foi muito útil para mim, pois naquela época se estudava muito no seminário; e na universidade, em Roma e em Lyon, também aprendi um bocado. Até hoje esses estudos me são úteis nas minhas pesquisas e escrivinhações. A partir do meu regresso à vida civil, não tenho tido tempo para estudos sistemáticos e profundos. É aproveitar a bagagem acumulada.

Creio que eu tinha um chamado mesmo para aquela vida. Por quê? Atravessei a adolescência e começo da juventude abstendo-me de sexo; o que só é possível se você tiver um carisma, uma graça de Deus (questão de fé), pois não é natural, nem fácil sem um carisma especial. Conforme o princípio filosófico que norteava um velho programa de TV, Noites Cariocas, que vinha para o Recife em videotape (numa época sem satélites), “mulher é ótimo”.

Mas como? O carisma foi embora? Acredito que, quando Deus me permitiu uma visão mais larga da vida, da consciência religiosa, me colocou diante de uma opção. Eu poderia continuar como monge ou padre, mas por conta e risco próprios. Não teria mais a graça respectiva. Acredito que isso acontece com muita gente, tipo “agora já cheguei até aqui; não sei fazer outra coisa; o que é que vou fazer?; como vou viver?” Daí os graves e constantes escândalos que abalam a credibilidade da Igreja de Cristo, sobretudo devido à teimosia do Vaticano em continuar exigindo dos clérigos ocidentais um celibato forçado, burocrático, sem carisma.

Outro aspecto a considerar é que, na formação clerical (ao menos na minha época, 1944-57), há uma verdadeira obsessão pelo chamado pecado da carne. Observando com um certo recuo, é como se nossos mestres nos ensinassem que, se você não namora, não faz sexo, então você já é um santo homem, mesmo que seja injusto, ganancioso, invejoso, preconceituoso etc.

Pior. A castidade seria uma formalidade burocrática que consistiria apenas em não se relacionar com mulher. O que leva muitos, dentro de um ambiente de segregação sexual, a certos relacionamentos com outros homens que vão muito além de uma simples amizade, chegue-se ou não a vias de fato homossexuais. Felizmente, fui preservado desse caminho, mas atravessei perigos.

Num tal contexto, uma superdimensionada devoção católica a Nossa Senhora pode (apenas pode) ter uma conotação freudiana. A mulher nos é apresentada na literatura religiosa (São Tomás de Aquino, por exemplo), como o próprio cão chupando manga (manga?), o “demônio meridiano”, que ninguém sabe exatamente o que é, mas causa assombração. A tentativa de dar ao clero uma formação mais aberta e em contato com o povo cristão, incluindo mulheres, promovida à luz do Concílio convocado pelo papa João 23, teve curta vida, pois os papas mais recentes vêm se empenhando numa volta à Idade Média e ao Concílio de Trento. Exceção de Francisco. Então Maria, mãe de Jesus e, pela tradição, nossa querida mãe espiritual, seria uma sublimação da mulher, uma mulher etérea que a gente pode amar sem pecado.

Uma das primeiras providências do lamentável arcebispo que se seguiu a Dom Helder em Olinda e Recife foi fuxicar na corte papal para que fossem extintos o Seminário Regional do Nordeste, que formava o clero diocesano regional segundo as normas conciliares, e o Instituto de Teologia do Recife (Iter), onde padres, religiosos, leigos recebiam formação filosófica e teológica também de acordo com as normas conciliares.
Voltando ao início deste capítulo, meus anos de formação religiosa me haviam afastado de qualquer contato com o mundo como ele é e de qualquer preparação para uma profissão que me pudesse sustentar. Fui fazer traduções e, mais adiante, através da Rádio Universitária (operada pelo SEC de Paulo Freire), entrei para o jornalismo, minha profissão até hoje.
Evidente que não vivia mais em um ambiente sexualmente segregado. Comecei a conhecer garotas, namorar. E então? Haviam me ensinado que namorar é conhecer uma pessoa para casar. Nada de namorar porque é gostoso, porque é natural. Só mãos dadas. Um beijinho furtivo já pode dar em escorrego para o “pecado”. Carlos Pena descreveu muito bem a situação: “Trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados”.
Além disso, “Toda donzela tem um pai que uma fera”. Independente de mim, era muito difícil ter relações mais expandidas com uma namorada (supostamente virgem, incólume, candidata a um casamento na igreja, com véu e grinalda etc., etc.), ir às vias de fato, como costumo dizer. A marcação era cerrada, restando a única opção de buscar relações nas boates que abriam portas ao exercício “profissional” do sexo. O que não é algo que se possa considerar humanamente saudável, apesar de, por motivações as mais diversas, ser prática tradicional imemorável.
Dada a minha longa formação de abstinência sexual, de ver o sexo como “o pecado”, confesso que não foi fácil. Via-me como um pecador, um fora-da-lei-de-Deus. Com a minha visão de hoje, não ficaria com a consciência pesada. Creio que Deus criou o sexo para usufruirmos dele como uma grande e gostosa bênção. Se você não tem nenhum compromisso, com uma namorada, uma esposa, por que não aproveitar livremente esse dom de Deus? Curioso é como esses mesmos que defendem a abstinência, o celibato forçado, liberam geral quando se trata de homossexualismo, incluindo a pedofilia que tanto enxovalha a Igreja de Cristo. Resumindo, o que a minha formação me dizia é “case logo para não viver em pecado”.
Na verdade, de um modo geral, o Recife na época era de um atraso mental de chorar. O que me remete de novo ao que já expressei: deveria ter ficado estudando e procurar trabalho na Europa. Não quero dizer que a nossa cidade e o Estado sejam hoje muito avançados de ideias e comportamentos; mas, naquela época, t’esconjuro!




O SERVIÇO DE EXTENSÃO CULTURAL DA UNIVERSIDADE NA VANGUARDA DAS MUDANÇAS





Aí por volta de 1961, o professor Paulo Freire aceitou convite do reitor João Alfredo Gonçalves da Costa Lima (UFPE, então Universidade do Recife) para implantar o Serviço de Extensão Cultural (SEC) vinculado diretamente à Reitoria. Ele me convidou para compor a sua equipe, na companhia de gente da melhor qualidade, como Luiz Costa Lima, Jarbas Maciel, Marcius Frederico Cortez, Arthur Carvalho, Roberto Cavalcanti de Albuquerque, Elza Freire (casada com Paulo), o jesuíta padre Paulo Menezes, Almeri Bezerra (que era padre na época), Paulo Pacheco, Jomard Muniz de Brito, José Laurênio de Melo, Orlando da Costa Ferreira (os dois últimos do Gráfico Amador), Dulce Campos, Maria Adozinda, Francisco Bandeira de Melo, Aurenice Cardoso, Astrogilda Carvalho.

Paulo divergia do modo como era conduzido o Movimento de Cultura Popular (MCP), tanto administrativa como pedagogicamente, e aceitou o convite do reitor para poder ter liberdade e oportunidade para desenvolver o seu depois famoso método de alfabetização. Junto com Jarbas Maciel, cabeça privilegiada, filósofo, músico, concluiu que o seu método de alfabetização só tinha sentido integrado em um sistema muito mais amplo e abrangente de educação, que ficou conhecido como Sistema Paulo Freire, que ele teve oportunidade de aperfeiçoar e divulgar pelo mundo nos muitos livros que escreveu no exílio, depois do golpe militar de 1964.

Os objetivos do SEC eram basicamente desenvolver e aplicar sistema e método, e oferecer uma cultura geral a um público que não tivera oportunidade de frequentar o ensino superior. Além de conferências de extensão cultural, eu coordenava uma divisão encarregada da avaliação da aplicação do método Paulo Freire, com uma turma excelente de estudantes universitários. Em 1962, ficou pronta a Rádio Universitária e o reitor confiou sua programação ao SEC. Escolhido para dirigi-la foi Laurênio Melo, credenciado pelos anos que passou trabalhando na BBC de Londres. Eu fazia programas de observação e crítica do que aparecia na imprensa.

Eram tempos agitados, efervescentes mesmo, política (nesse ano, Miguel Arraes, que era prefeito eleito pela Frente do Recife, foi eleito governador de Pernambuco), social, culturalmente. O trabalho do SEC era uma vitrine que atraía pessoas de todo o Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro, tanto para ver, sentir, aprender, reportar, como para espionar (o golpe estava em gestação). Lembro que eu e Madalena (filha de Paulo Freire) fomos espionados e dedurados por alunas da PUC-Rio, enviadas por uma discípula do corvo Carlos Lacerda.

Grandes nomes do teatro passavam regularmente por aqui (até temporadas), como Nelson Xavier, Boal. Quando Paulo Freire foi chamado, pelo ministro da Educação, Paulo de Tarso, para coordenar nacionalmente a aplicação de seu método de alfabetização, nosso contato com ele ficou mais raro e difícil. Mas o que complicou mesmo a nossa atividade foi que, acompanhando aquela agitação nacional e local a que me referi, o SEC tornou-se muito dividido politicamente. A esquerda é tradicionalmente muito dividida (só se une na cadeia, conforme o dito). Além do Partidão (o PCB) e do PC do B (primeira dissidência comunista), despontavam a Ação Popular (movimento de raiz católica) e até uma organização guerrilheira, o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), entocado em Goiás e do qual Francisco Julião era um dos líderes.
Em busca de um ambiente de estudo e pesquisa, Jarbas Maciel e eu estávamos conversando e fazendo contatos para migrar para um instituto chefiado pelo professor José Antônio Gosalves de Mello, o Instituto de Ciências do Homem. Depois do golpe, as universidades federais foram forçadas a adotar o modelo americano de centros e departamentos. Aguardávamos uma passagem de Paulo Freire por aqui para comunicar-lhe nossa decisão. Nem deu tempo. Quem chegou por aqui furiosamente foi o golpe militar. Lembro que no IPM instaurado para examinar a “subversão” na universidade, por insistência de Gilberto Freyre, desafeto do reitor João Alfredo, junto aos coronéis que se apossaram de Pernambuco, o capitão Moreira Paes queria de qualquer jeito que eu falasse mal do SEC e do meu propósito de mudar para o Instituto de Ciências do Homem.
Achei que isso não era adequado num contexto de arbítrio e caça às bruxas. O capitão ficou pê da vida, mandou me encafuar por um mês e me colocou numa lista de demissões da universidade que saiu no Diário Oficial da União ao apagar das luzes do Ato Institucional. Este fora editado pelos militares para institucionalizar, no faz-de-conta, o governo golpista. Naquele tempo o AI era único. Com o assanhamento dos militares por poder e mando e sua radicalização crescente, vieram mais quatro, inclusive o famigerado AI-5.



LASCIATE OGNI SPERANZA, O VOI CH’ENTRATE, PERCH’È LO REGNO DELLA MORTA GENTE



Ignorando que estava a dois anos do “reino dos mortos” (golpe de 1964), em 1962 me casei com Tereza Lúcia, filha de um cara muito legal que se tornou meu amigo, Paulo Neves Baptista, e de dona Linda, uma sogra muito amiga. Na verdade eu não tinha condições financeiras para enfrentar os compromissos de um casamento. Apenas muita esperança de que, com os avanços políticos em curso, tudo no Brasil iria melhorar muito, trazendo oportunidades de progresso profissional. E também eu não me havia ainda libertado totalmente dos ensinamentos e condicionamentos do seminário, de que só podia ter sexo dentro do casamento. Além disso, achava que estava apaixonado. Algo que a gente constrói na cuca e fica achando que é verdade do coração. Não duvido das paixões, mas as mais simbólicas, como, entre outras, as de Romeu e Julieta e de Abelardo e Heloísa, nunca se consumaram ou não se subterram ao desgaste do tempo.

Desse casamento, que durou perto de 30 anos, guardo quatro filhos maravilhosos (sem falar nos netos e duas netinhas): Carlos Emanuel, que nasceu no final de 1962, formou-se em economia e hoje é diretor financeiro de uma energética lá na terra da garoa; Gustavo Henrique, nascido poucos dias após a Redentora, que se formou em direito e hoje é procurador da PCR, professor e advogado; Paulo, de 1966, que estudou engenharia e informática e hoje trabalha na Procuradoria da República aqui no Recife; e Marcos, nascido um pouquinho antes do AI-5 e que fez arquitetura, mas tem trabalhado mais em publicidade e marketing político. Hoje “está”, conforme a expressão de Eduardo Portela, secretário de Habitação do Estado.

Taí uma coisa em que tive sorte. Apesar dos graves problemas que a Redentora (que é como Stanislaw Ponte Preta chamava o golpe, que, para os milicos, fora uma “revolução redentora”, a primeira revolução reacionária da história) me trouxe, como prisão, demissão, desemprego, dificuldade de obter emprego, impossibilidade de criar os filhos como eu tinha planejado, meus meninos estudaram, ficaram livres de drogas e outros perigos e estão aí criando os filhos deles muito melhor do que eu os pude criar.

Eu poderia ter esperado um pouco para casar e teria apanhado muito menos com o golpe. O golpe foi uma desgraça para o país. Quase meio século de atraso, pois o processo de redemocratização passou por figuras esdrúxulas como Ribamar Sarney, Fernando 1º (Collor) e Fernando 2º (FHC). E, para mim particularmente, uma tragédia. Daí o título deste capítulo, que lembra a entrada no Inferno de Dante, na Divina Comédia: “Deixai toda esperança, o vós que entrais, pois aqui é o reino dos mortos”. O tema do golpe militar de 1964 foi magistralmente esgotado por Fernando Coelho, sobretudo em seus livros 1964 – Golpe de Estado, Ditadura e Guerra Fria e Direita Volver, o Golpe e 1964 em Pernambuco. No primeiro, ele coloca, com abundantes referências à documentação existente, o caráter de golpe encomendado e fartamente apoiado pelo governo dos Estados Unidos, enquadrando o feito da cúpula militar brasileira teleguiada no contexto da Guerra Fria. Há também os superdocumentados (graças a sua proximidade com o general Golbery) quatro volumes sobre a ditadura do jornalista Elio Gaspari. Além de, mais recentemente, muitos outros.



       O GOLPE VISTO DA PONTE, COM LICENÇA DE ARTHUR MILLER



Assim sendo, e como estou relatando fatos que eu vivi (realmente, viver é muito perigoso; Riobaldo Tatarana tinha razão), me limito aqui a contá-los, com eventuais comentários. O golpe chegou ao Recife no dia 1º de abril, mas infelizmente não se tratou de uma pegadinha de 1º de abril. A repentina marcha do general Mourão Filho (que se autodescreveu como uma “vaca fardada”) de Minas para o Rio surpreendeu até os golpista-mores, que se concentravam no então Estado da Guanabara. A flotilha estadunidense de apoio (os donos do golpe esperavam resistência) ainda não havia chegado à costa do Espírito Santo, onde eventualmente desembarcaria fuzileiros e armas para sustentar o estado de beligerância em Minas. Na concepção do establishment estadunidense, democracia é coisa para branco e uma “ditadura amiga” faz muito bem aos wasps.

Mas, no dia 31 de março à noite, já se sabia da rebelião particular de Mourão, pois a maioria dos donos de jornais, rádios, TVs apoiava e incentivava o golpe (repeteco hoje; nada aprendem) e era informada pelos golpistas. O então chamado 4º Exército, sediado no Recife, rapidamente aderiu aos golpistas e, na manhã do dia seguinte, quando cheguei ao meu trabalho na Rua Gervásio Pires (equipe de Paulo Freire), encontrei um clima feio. A gente estava nas barbas de um complexo de quartéis que abrigava as sedes do 4º Exército e da 7ª Região Militar e também o Hospital Militar. Hoje ali é só o hospital.

Saí caminhando pro lado da ponte que leva ao Palácio do Governo. Era soldado pra todo lado, tudo bem armado. Mas o trânsito ainda não estava interrompido. Logo dava para perceber que se estava montando um cerco ao Palácio do Governo. E se houvesse um tiroteio? (antes do anoitecer, alguns garotos foram assassinados na Avenida Dantas Barreto). Mas na idade em que eu estava (32 anos) a gente não pensa em morte. Na tarde daquele dia, o governador Miguel Arraes, que se recusou a renunciar ao mandato que o povo lhe havia conferido, foi preso. Rapidamente, o vice Paulo Guerra, que tinha a confiança dos golpistas, tomou posse.

O que fazer? Depois do meu casamento em 1962, eu não estava participando muito da militância política, que exercia via UJC (União da Juventude Comunista). Contatar a turma dessa banda vermelha seria temeridade, com os líderes comunistas e da esquerda em geral sendo caçados, Gregório Bezerra, mais uma vez preso, espancado, arrastado pela Praça de Casa Forte, telefones censurados, todos os “subversivos” se escondendo ou rumando para o Rio, São Paulo ou o exterior.
Como o trabalho que fazíamos no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da Universidade do Recife (hoje UFPE) ainda não estava enquadrado nas atenções prioritárias dos golpistas, continuamos indo normalmente ao local de trabalho. Mas para fazer o quê? Paulo Freire estava em Brasília quando ocorreu o golpe, convocado que fora a ampliar nacionalmente a abrangência de seu sistema educacional. Impossível prosseguir com os trabalhos de alfabetização e conscientização, altamente suspeitos na nova ordem, e com os programas da Rádio Universitária. Logo puseram alguém bem comportado (conforme as novas regras), Edmir Régis, para administrar o espólio. Antes, o acervo do SEC havia sido saqueado por estranhas figuras: aparelhos de projeção, biblioteca, arquivos, desenhos artísticos doados por Francisco Brennand, tudo. Nenhum documento dizendo para onde levaram ou quais foram os autores da façanha. Não creio que tenha sido obra do Exército, pois, como falei acima, os militares tinham outras prioridades no momento. O SEC só entrou na mira dos fuzis uns quatro meses após o golpe, devido à insistência de Gilberto Freyre junto aos coronéis.
É que o mestre de Apipucos tinha uma pendenga com o reitor da universidade, João Alfredo Gonçalves da Costa Lima, e aproveitou a oportunidade para uma desforra, garantindo aos milicos que havia perigosos comunistas agindo no SEC e em outros setores da universidade. Com um pau, matou dois coelhos. É que, na sua monumental vaidade, o mestre começara a sentir inveja do sucesso, inclusive internacional, de pessoas como Celso Furtado, Paulo Freire. Antes, qualquer visitante de fora procurava apenas o soi-disant sociólogo-antropólogo para contatos. De repente, começou a aparecer gente aqui para conhecer ou entrevistar os novos notáveis, sem nem procurá-lo. Assim não dava. Né? Nada como um golpe para salvar o prestígio e o exclusivismo daquele democrata.
Uma explicação. Gosto muito de Gilberto Freyre como literato. Ele tinha cultura, imaginação, boas ideias, um estilo muito agradável; embora nunca houvesse concluído nenhum curso superior, valendo-se apenas de curso de extensão realizado na Universidade Columbia. Com a censura vigente na Igreja, eu não consegui ler nenhuma obra sua no Seminário. Somente no meu último ano letivo de licenciatura em teologia (1956-57), em Lyon, tive acesso a Casa Grande e senzala, em tradução para o francês – Maîtres et esclaves. Curti muito. Nunca imaginei que, sete anos depois, seria eu, junto com tanta gente ilustre da universidade, vítima de seu autor, que decidira puxar o saco dos golpistas.


               BUSCANDO UMA SAÍDA NO FIM DE ESCURO TÚNEL



Como foi feito em todas as repartições pelos acólitos dos golpistas, que estavam a serviço da burguesia e seguindo determinações de Washington (cadê a democracia?), a Universidade do Recife ganhou (?!) também uma Comissão Geral de Investigações (CGI), composta por professores insuspeitos e também por um militar. Foi ouvido um bocado de gente, inclusive a turma do SEC, mas a conclusão final é que cada um continuasse seu trabalho ou procurasse outro setor da instituição para trabalhar. O presidente da CGI da universidade era o professor Lalor Mota, que eu já conhecia do Pedro II, do tempo em que trabalhara como intérprete daquele professor francês.

Como a equipe de Paulo Freire fora posta em quarentena, tendo sido aproveitados no SEC da nova era praticamente apenas servidores burocráticos e auxiliares, aproveitei para procurar novo trabalho, pois não tinha garantia de que não terminaria sendo demitido. Mesmo porque, insatisfeito com o resultado da CGI, Gilberto Freyre e falcões de diversos calibres continuaram emprenhando o ouvido do coronel Ibiapina, o “grande inquisidor” de Pernambuco, até que ele instituísse um Inquérito Policial Militar (IPM) para constatar a malignidade e periculosidade de gente do porte de Pelópidas Silveira, Antônio Baltar, Paulo Freire e outros professores da universidade, e de peixes menores como eu e o pessoal mais jovem.

IPM é coisa braba, não é uma comissão de professores, gente culta que sabe respeitar ideias e liberdade de expressão. O inquisidor escolhido foi um capitão que atendia por Manuel Moreira Paes. Tão por fora da realidade que ainda era fã de Carlos Lacerda, num momento em que os golpistas não precisavam mais dos serviços do Corvo (como o apelidou Samuel Wainer). O capitão instalou-se numa sala da Reitoria da Universidade do Recife, que no tempo ficava no Parque Treze de Maio, e começou a convocar os “subversivos” para ouvi-los.
Depois de ouvido, fiz uma viagem ao Rio de Janeiro e São Paulo para ver oportunidades de emprego. Como a experiência que eu havia adquirido até então era no setor de pesquisa, estudo, redação, inclusive em jornalismo na Rádio Universitária, busquei trabalho em jornais. Não foi fácil. Além de eu não conhecer quase ninguém do ramo naquelas cidades, onde estavam os grandes jornais, o pessoal do Recife e de outros Estados que correra para ali às primeiras clarinadas e tiros do golpe já tinha invadido todas as redações.
O que eu deveria ter feito era voltar para a Europa. Viera de lá havia cinco anos e ainda tinha alguns contatos; quem sabe poderia pegar uma bolsa. Sem falar na tradição francesa de asilo político. Ainda não havia na época a feroz rejeição a estrangeiros que há ali hoje, sobretudo de povos morenos. Não conheço ninguém que tenha procurado outros países e se dado mal. Terminei voltando ao Recife para cair na boca do lobo.
Era fim de julho, começo de agosto. Amanhecia o dia quando bateram à porta do meu apartamento. Fui atender e me disseram que o coronel Ibiapina mandara me chamar para me interrogar. Pedi um tempo para me arrumar. Felizmente, não houve violência, embora, pelas janelas, eu visse vultos estranhos rondando o edifício. Disse até logo a Tereza e às crianças. Carlos Emanuel tinha um ano e oito meses, Gustavo Henrique apenas quatro meses.
Entrei no jipe dos homens, que me levaram ao complexo de quartéis da Rua do Hospício/Rua do Príncipe, entrando pela portaria da 7ª Região Militar. Me botaram sentado num banco e disseram que aguardasse. Seriam umas 9h. Sempre que eu tenho de enfrentar um chá de cadeira, levo um livro ou revista. Não tinha levado nada. Fiquei ali mofando e pensando no que pretenderia de mim o “grande inquisidor”. Lá pras 11h30, apareceu uma figura dizendo que a acompanhasse e que me levou direto a uma cafua que haviam destinado aos presos políticos, num pátio grande onde se encontravam todos os quartéis e o Hospital Militar. Aí foi que eu descobri que estava mesmo era preso.
O capitão do IPM, que já havia me interrogado solto, mas não gostara das minhas respostas (ele queria que eu contasse os problemas internos do SEC, como desavenças, desentendimentos políticos, e criticasse a direção), é que tinha mandado me prender, pelo que soube depois, mas escondido por trás de Ibiapina. Fiquei mofando ali durante quase todo o mês de agosto, antes que ele me chamasse para novo depoimento. Perguntei-lhe por que a prisão, já que eu não estava foragido, não morava em local incerto e não sabido, como se diz no linguajar jurídico-policial, atendera à primeira intimação. Ele respondeu que era para a gente não poder combinar os depoimentos. Vejam o nível. A gente já tivera uns quatro meses para combinar depoimentos, se fosse o caso. Não sabia então eu que tais inteligências iriam conduzir (ou extraviar) o Brasil por 21 longos e penosos anos.



O OFICIAL MÉDICO QUE NÃO GOSTAVA DE RECEBER CONTINÊNCIA E O GENERAL QUE JUSTIFICAVA TORTURAS

Havia duas cafuas num canto do pátio, para milicos mal comportados. Uma das duas fora reservada para presos políticos. Com um mínimo de conforto, caberiam ali umas oito pessoas. Havia cerca de 20, sobretudo estudantes. Eu não conhecia ninguém. Com o vai-vem, às vezes chegava a mais. Não tinha camas suficientes, mas providenciaram colchões pra quem chegou após esgotada a lotação. Lá pras 16h, apareceu na grade um senhor impecavelmente vestido de branco e perguntou quem era Juracy Andrade. Apresentei-me e ele perguntou: o senhor é comunista? Desconfiado, disse que não. Eu havia aprendido com os jesuítas um recurso chamado restrição mental: você afirma algo, mas fazendo mentalmente uma restrição àquela afirmação. O alinhado cavalheiro disse: “Pois eu vou soltar o senhor”. E foi embora.
Era o médico Jayme da Fonte, também militar, solicitado pelo advogado e professor de direito Mário Neves Baptista, irmão do meu sogro. Mas, naquela conjuntura, gente da qualidade de Jayme da Fonte e Mário Baptista não tinha nenhum prestígio com o Exército. Continuei preso e sem saber por quem nem por quê. Como não sabia quanto tempo ia ficar, tentei me organizar. Às quintas-feiras, a gente podia receber visitas, mas falando só pela grade, a gente enjaulado. Minha então mulher Tereza ia sempre, minha irmã Ruth, Mamãe, parentes. Minha irmã me levou uma coleção que ela tem de Sherlock Holmes, que me ajudou muito a passar o tempo.
Apesar da precariedade de espaço e da indecência de estar preso sem motivo, enquanto os corruptos e ladrões de sempre estavam se mancomunando com a ditadura, havia aspectos hilariantes. Num espaço defronte da cafua, havia sempre um milico postado, quem sabe para a gente não fazer algum atentado contra a pátria amada, idolatrada. Havia um oficial médico do hospital que passava por ali de vez em quando e não era muito chegado aos rituais militares. Não gostava, por exemplo, de receber continência. Era um cara distraído. Quando ele se lembrava, cortava volta lá pelo canto para o sentinela não notá-lo. Quando esquecia, vinha bem distraído pelo caminho normal e, ao passar pelo sentinela, tome-lhe continência. Aí ele fazia gestos de impaciência e a gente ria muito, baixinho pra ele não perceber; “morrendo de rir às caladas”, como dizia Amália, uma inesquecível empregada de minha avó Maria Augusta.
Nos primeiros dias do golpe, nos contaram, tinha havido muitos abusos naquela cafua onde agora nós estávamos. Policiais civis a serviço do golpe tiravam presos à noite para espancar, torturar. Foi quando o diretor do hospital, coronel Oldano Pontual, pai da grande artista plástica Ida Pontual, que conheci depois, exigiu dos superiores que a cafua dos presos políticos ficasse sob a jurisdição dele, da direção do hospital. Mais uma sorte que eu tive nessa esculhambação de arbitrariedades.
Entre as figuras que vimos passar por ali, estavam o general Mourão Filho, aquele que apressou o golpe com sua marcha de Minas para o Rio (e se autodefiniu como uma vaca fardada), e o general Ernesto Geisel, enviado pelo marechal-ditador para apurar denúncias de torturas em Pernambuco. Evidentemente, não viu nenhum abuso que merecesse atenção. Mais tarde, já no plantão de ditador, defendeu a necessidade de tortura em certos casos. Grande! Da cafua eu avistava um portão um pouco distante por onde via passar minhas alunas da Escola Normal Pinto Júnior. Eu dava umas aulas lá, de filosofia da educação, por indicação de Paulo Freire.
Uma certa noite, já no final de agosto, o capitão inquisidor mandou me chamar finalmente. Para perguntar o de sempre e ouvir o de sempre. Como eu não dizia o que ele queria, gratificou-me com uma indicação para minha demissão da universidade. Uns dias depois me mandaram embora da prisão.


DA SUCURSAL RECIFENSE DA FOLHA DE S. PAULO À TERRA DA GAROA AO VIVO

Agora era procurar emprego, pois a demissão era certa. Nada fácil para um cara punido pela nova ordem, pela “revolução redentora”, ou simplesmente “a redentora”, como dizia Stanislaw Ponte Preta (o grande Sérgio Porto), que depois juntou suas crônicas corrosivas no livro Febeapá – Festival de besteiras que assola o país. Fui para a sucursal local do Correio da Manhã, um jornal que fazia oposição à ditadura e, alguns anos depois, foi obrigado a fechar, por falta de publicidade e outras pressões. O chefe da sucursal do jornal no Recife era um repórter de turfe absolutamente falho de luzes e de ética. Danilo Fragoso era parente de um diplomata amigo de dona Niomar Sodré Bittencourt, presidente do Correio. A gente trabalhava, mas quem assinava os despachos para o Rio era ele.
Busquei trabalho também no Jornal do Commercio, mas fui preterido devido a minha punição pela ditadura. O diretor da redação era um convicto “revolucionário”. O certo é que quase a totalidade da grande imprensa não só ficou do lado da ditadura, mas participou das tramas golpistas que precederam a derrubada da democracia. Hoje clamam contra “censura” quando o governo fala em regulação da imprensa, algo comum em qualquer país civilizado. É uma imoralidade um bem como a informação ser monopolizado ou oligopolizado por meia dúzia de famílias sem nenhum compromisso com uma impressa realmente livre. Publica-se o que interessa a tais figuras, não se publica o que é contra seus interesses e manipula-se tudo. Elas não defendem gente como o criador do Wikileaks, vítima de brutais tentativas de chantagem e silêncio forçado pelas democracias burguesas.
Sem dinheiro e a família aumentada com dois filhos, pois, na euforia criativa e generosa pré-golpe, não dava para imaginar andar para trás. Carlos Emanuel nasceu em 24 de dezembro de 1962, ano da vitória de Miguel Arraes nas eleições para governador. E Gustavo Henrique em 25 de abril de 1964, quando o golpe militar já estava vitorioso, e as forças armadas transformadas em tropas de ocupação para garantir interesses estrangeiros. Seria esse o objetivo legítimo delas? Ter filhos é uma vivência incrível, que só você experimentando para saber como é.
Uma pessoa que me deu emprego (pelo que lhe sou muito grato) em sua agência de publicidade, a Itaity, foi Carol Fernandes, uma pessoa que, mais adiante, deu um sacolejo no setor ao quebrar a padronização imposta do exterior e obedecida pelas grandes agências nacionais. Ele introduziu na publicidade local temas, músicas e linguagem pernambucanos. Ficaram famosas as campanhas da Lux Ótica e das Casas José Araújo. Na época em que trabalhei na Itaity, ela ainda era uma pequena agência abrigada no Edifício Continental, perto da Guararapes.
Deixei a Itaity quando fui convidado por Calazans Fernandes para trabalhar na sucursal local da Folha de S. Paulo, em 1966. Além de passar a ganhar um melhor salário, pois se tratava de um grande grupo jornalístico, fui muito prestigiado por Calazans, que eu já conhecia do tempo em que o método de alfabetização de Paulo Freire foi testado pioneiramente em grande escala na cidade de Angicos (RN), quando esse jornalista era secretário de Educação de Aloísio Alves. No momento em que fui para a Folha, estava quase concluído um caderno especial sobre o Nordeste, ideia de Calazans que agradou muito a um dos donos do jornal, Otávio Frias de Oliveira.
Logo depois, começamos a trabalhar na preparação de um suplemento especial sobre a Amazônia (foi na época da criação da Sudam, 1967), quase todo elaborado por mim. Quando o suplemento ia ser editado, viajei a São Paulo com Calazans e passei lá cerca de uma semana. Ficamos hospedados no Hotel Excelsior da Avenida Ipiranga. Maravilha pra mim que, ocupado em salvar a pátria militando na esquerda, havia muito não sabia o que era São Paulo, Rio, Europa nem pensar. Naquela época, a área do famoso cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João, próximo à Praça da República e Largo do Paissandu, cantado por Caê, era uma boniteza só, com muitos hotéis, cinemas, bares e um beautiful people passeando pra lá e pra cá. Hoje a degradação ali é grande.
Se o sr. Frias tinha gostado do suplemento sobre o Nordeste, mais contente ainda ficou com o da Amazônia, mesmo porque, além de ser bem feito (modéstia à parte), a publicidade correu solta graças a grandes investidores na região Norte. Foi quando Calazans vendeu ao sr. Frias a idéia de reunir uma equipe na sede do jornal, em São Paulo, dedicada exclusivamente à elaboração de cadernos especiais. Uma sacada nova, que depois foi seguida por quase todos os grandes jornais. Para a capital paulista Calazans levou, além de mim, os jornalistas Manuel Carlos Chaparro e Gaudêncio Torquato.
Lá se juntaram a nós outros profissionais, inclusive nordestinos ali refugiados do golpe. Constituiu-se uma equipe muito boa e que se entendia muito bem. Fiquei como editor de pesquisa, com um salário inimaginável para um proscrito do golpe: 1.500 cruzeiros novos. Minha frustração, se assim se pode dizer, é que, quando fui contratado, o salário era de Cr$1.500.000, mas logo depois o ditador do primeiro plantão, marechal Castelo Branco, instituiu a nova moeda, cortando alguns zeros. Perdi a oportunidade de ter um salário milionário. Algum tempo mais tarde, juntou-se à equipe Anchieta Hélcias, com o qual fiz uma boa amizade que dura até hoje. Entrando a seguir no setor governamental, nas administrações de Eraldo Gueiros e Moura Cavalcanti, Anchieta tornou-se um dos pais da ideia de implantar em Suape um complexo de indústrias com porto próprio. Hoje ele está na iniciativa privada.
O caderno especial da Folha dedicado à Amazônia saiu por volta de março de 1967. No mês de maio, creio, a equipe central do novo departamento estava viajando para a velha Terra da Garoa. Depois de enfrentar tanta dificuldade, foi um tempo maravilhoso para mim. Paguei minhas dívidas. Instalei-me provisoriamente num hotel perto da Folha, onde já havia uma colônia nordestina. Comecei a procurar casa. A equipe caiu no trabalho de preparação do primeiro caderno especial que íamos produzir fora da sucursal recifense do jornal, “Grande São Paulo – O desafio do ano 2000”. Esse trabalho foi muito bom para eu poder conhecer melhor a história e a realidade da cidade, mais uma a que me tornaria ligado (amo todos os lugares onde morei, vivi e vivo, porque se faz uma ligação sentimental, vital).



ESSA INTENDÊNCIA É DE MORTE!” TERIA DITO DOM PEDRO. MAIS UM GRITO NA NOSSA HISTÓRIA


A história oficial do Brasil é contada a partir do Sudeste. Frei Caneca, Padre Roma, Abreu e Lima, Nunes Machado, os revolucionários pioneiros de 1817, 1824, 1848, Bernardo Vieira de Melo implantando uma efêmera República em Olinda já no século 18 (Pernambuco foi castigado pelos interesses da Corte perdendo cerca da metade do seu território) não existem praticamente na história oficial. Só contam Tiradentes (nada contra o dentista que perdeu o pescoço porque seus companheiros abriram o bico), a Inconfidência Mineira, o príncipe dom Pedro, que fez a independência fiel a interesses lusitanos e dinásticos, seguindo o conselho do pai dele. Há dúvidas sobre o que ele disse na hora e circunstâncias do assim dito Grito do Ipiranga. Sustenta-se uma versão paralela, talvez inspirada no Samba do crioulo doido de Sérgio Porto.
Estava o príncipe em São Paulo não se sabe a propósito de que, pois a cidade era, naquela época, bem insignificante. Provavelmente por ser caminho para Santos, onde o aguardava a Marquesa Domitila de Castro, sua amante. Faltava muito tempo ainda para construírem a Rio Santos, hoje parte de BR-101. Ao passar pelo riacho Ipiranga, teria sentido vontade de satisfazer necessidades fisiológicas (como falam as boas línguas). Concluído o principesco serviço (quando eu era criança, isso se chamava “fazer serviço”), pedira papel higiênico (!?) e lhe fora dito que estava faltando. Já naquela época, havia a tão escutada resposta: “Tem, mas tá faltando”. Dom Pedro teria lavado as principescas nádegas ali mesmo no riacho, gritando a seguir de espada em punho: “Essa intendência é de morte!” (como se sabe, quem cuida de material nos quarteis é a intendência) De onde se poderia concluir que, no Brasil, temos gritos demais e ações de menos: a independência e a república, por exemplo, foram gritos. Getúlio é um que fez uma revolução, mais tarde deu um golpe e depois se elegeu constitucionalmente presidente da República. Tudo sem grito. Foi derrubado por gritos histéricos de Carlos Lacerda e seus cupinchas.
Desde a mudança da Corte portuguesa, fugitiva da ameaça napoleônica, de Lisboa para a Bahia e dali para o Rio de Janeiro, políticos fluminenses, e depois mineiros e paulistas, dominaram na Colônia, no Império e agora na República imperial. Lembremos que o jurista Fábio Konder Comparato já nos explicou que, desde os tempos coloniais, o poder supremo no Brasil sempre pertenceu a dois grupos intimamente associados; os potentados privados e os grandes agentes estatais. Na prática, os ditos representantes do povo são eleitos, em sua quase totalidade, mediante financiamento empresarial (acrescento: o ministro Gilmar Mendes, do STF, quer que continue assim e, há cerca de um ano, está sentado sobre uma decisão que já erra certa. Pediu vistas, mas, sentado, não vê nada, a não ser ...). “O que nos compete”, diz Comparato, (Carta Capital de1º de abril de 2005), “é iniciar desde logo a terapêutica adequada, consistente em quebrar a soberania oligárquica e reformar nossa mentalidade coletiva”. Impeachment seria mero golpe com tinturas legais, como aconteceu com Lugo no Paraguai. Uma excelente revista a Carta Capital, em meio ao desvario de manipulações golpistas da Veja e quejandas.
Estou fazendo tantas considerações para situar minha maior aproximação com São Paulo e sua história, por ter ido morar ali na Pauliceia Desvairada em 1967. “Paulista é gente boa, mas é de lascar o cano. Eu nasci no Pajeú, mas só me chamam de baiano”, resume Luiz Gonzaga. Até hoje, oficialmente, naquele Estado, a tentativa de golpe contra a Revolução de 1930, em 1932, foi um autêntica revolução constitucionalista. Esquecem que eleições já estavam marcadas, mas os barões do café e os primeiros baronetes da indústria não queriam saber de nada que beneficiasse os trabalhadores. Também ninguém consegue meter na cabeça de um paulista médio que a Semana de Arte Moderna, em 1922, não é responsável pela introdução do modernismo por aqui. Foi uma manifestação de meia dúzia de deslumbrados com seus próprios umbigos, alguns de muito mérito. Pergunte ainda a um paulista, aí já mais culto, onde se iniciaram os cursos jurídicos neste país tropical, em 1827. Em São Paulo, responderão sem a mínima hesitação. Meia verdade. Os primeiros cursos jurídicos no Brasil foram criados por decreto imperial a se instalarem São Paulo e Olinda (hoje Faculdade de Direito do Recife), por serem duas cidades pequenas e tranquilas, onde os estudantes poderiam se concentrar em seus estudos, conforme justifica o imperador de plantão.
Em Pernambuco, na escola, aprendemos toda essa história mal contada, mas felizmente também aprendemos a história do ponto de vista regional nosso. Aprendemos pouco da origem e evolução da cidade de São Paulo. Na preparação daquele suplemento especial da Folha de S. Paulo, aprendi muito. Quando morei no Rio de Janeiro, também aprendi muito. Creio que, depois de perder o status de capital federal, a Cidade Maravilhosa teria de permanecer como uma Cidade-Estado autônoma, como o foi por alguns anos, até o general-ditador de plantão, Ernesto Geisel, decidir que teria de ser fundida com o velho e feudal Estado do Rio, por ser demasiado conscientizada politicamente. Aí vieram os Garotinhos, Garotinhas, Pezões, um vexame.


AGITAÇÃO POLÍTICA. MILICOS ASSANHADOS PREPARANDO O AI-5. BATISMO DE GÁS

À equipe original de Calazans foram se juntando outras pessoas, jornalistas e equipe de apoio. Interessante que, naquela época, não havia quase nenhuma animosidade ali contra trabalhadores de fora. Em fase de grande desenvolvimento, a cidade absorvia desde peões, trabalhadores braçais, a trabalhadores intelectuais. No setor jornalístico, a cada ano se criavam novas oportunidades, novas revistas, editoras, os jornais se expandiam. Muita gente do Nordeste foi trabalhar nos suplementos especiais da Folha, tanto que a gente criou a expressão Cortina de Jabá, em alusão à Cortina de Ferro, à Cortina de Bambu. Havia duas Reginas paulistas na pesquisa, que era o meu setor. Regina Máquina (apelido devido ao seu desempenho, rapidez e estrutura física) e Regina Célia. As secretárias (que atendiam à redação e à publicidade) também eram gente de ótima qualidade, mas não me perguntem os nomes. Faz tanto tempo.
Fiz uma boa amizade com Luiz Carrion, um gaúcho que comandava a publicidade dos cadernos desde o da Amazônia. Ele morava na Mooca e convidava muito a gente pra ir lá, inclusive fizemos ali uma festa de São João. Tinha muito espaço no entorno. Ele me lembrava outro gaúcho, tenente Orion, que era o nosso carcereiro quando eu fiz um mês de “serviço militar”, em 1964, no complexo do Exército do Parque Treze de Maio (hoje está ali só o Hospital Militar). O tenente foi escolhido pessoalmente pelo coronel Oldano Pontual, inconformado com abusos ali praticados contra detidos nos meses iniciais da “gloriosa”, e nos tratava o melhor possível nas circunstâncias criadas pelo golpe. Mas Carrion não era tenente. Era do Partidão e fizera uns anos de estudo em Moscou.
Nos fins de semana, antes de trazer a família para São Paulo, a gente saía por aquele mundaréu gastronômico dos arredores da capital: Embu, Itapecerica da Serra, Atibaia. E eu ia cuidando de encontrar uma casa para alugar. Na época ainda se podia morar em casas ali. Com a ajuda da mãe de Regina Célia, que morava na Vila Olímpia, encontrei um daqueles sobrados muito comuns ali, na Rua Ribeirão Claro, esquina com a Rua Casa do Ator. Bastante amplo, caberia bem a turma. Naquele tempo (pasmem), não havia edifícios de apartamentos na Vila Olímpia, apenas um pacato bairro de classe média. Só no vizinho Itaim Bibi havia edifícios e até um supermercado. E fiador? Problema grave, que expus Calazans. Aí ele falou com o sr. Caldeira, sócio do sr. Frias no jornal e naquela velha Rodoviária que atropelava o centro expandido da cidade. Com um fiador assim, não havia quem não alugasse casa.
Em julho, completei 35 anos e a turma mais amiga fez uma festinha na casa de Regina Célia. Em agosto, voltei ao Recife para pegar Tereza e as crianças. Agora eram três, com Paulo. Voamos para a Pauliceia Desvairada após muito chororô. Tereza era muito apegada à família e nunca tinha ido tão longe. Mas eu estava bem esperançoso de que ela, após as atribulações acarretadas pelo golpe, terminaria se acostumando à nova vida. O que não infelizmente aconteceu. Ela detestou tudo e não aceitava convites nem fazer amizade com ninguém. Era como se não tivesse aprendido nada com o golpe que eu levei com a militarização do Brasil.
Para as crianças, era uma novidade. Eu dava passeios com eles por ali. Um dia, de tanto andar, eles me perguntaram se eu acertaria a voltar para casa. Para os lados do rio Pinheiros, era um matagal só, onde havia uma favela, a Vila Funchal. Hoje tudo aquilo está cortado por avenidas e cheio de enormes edifícios, residenciais e comerciais. Até o Córrego da Traição, que passava ali perto, nos separando do Brooklin e da Hípica, foi emparedado e virou Avenida dos Bandeirantes (pra variar). Meu irmão Juarez, que morava em São Paulo havia tempo e era um solteirão invicto, foi morar com a gente. Ele ficava com uma kombi do trabalho dele (Gessy-Lever) e dava também uns passeios com os meninos. Sempre gostou muito de crianças. Com a chegada do frio, Carlinhos e Paulo sofreram muito com asma, uma praga causada pela poluição que já era braba naquele tempo.
A Vila Olímpia fica longe da Folha, que se abriga na Alameda Barão de Limeira, perto do cruzamento das avenidas São João e Duque de Caxias. Mas então o trânsito não era tão caótico e paradão como hoje. Eu pegava um ônibus ali perto e ia pela Joaquim Floriano (Itaim Bibi), Nove de Julho ou Brigadeiro Luiz Antônio e, conforme o ônibus, saltava no Anhangabaú ou na Praça General Osório (onde ficava o sinistro Dops). Ia sentado e podia até ler. Depois aprendi que isso faz mal à vista por causa do balancê (que saudade do bonde, do trem, que têm estabilidade). Almoçávamos geralmente num restaurante bem simpático que tinha atrás da Folha, na Barão de Campinas.
No sábado, nos reuníamos de manhã no jornal, os editores, para dar um balanço na produção. Mas isso era mais pretexto para depois sair por ali e comer a excelente feijoada do Tabu, um boteco bem no âmago da Boca do Lixo, hoje transformada em Cracolândia. Depois que eu já tinha deixado São Paulo, me contaram que o dono do Tabu fora assassinado por um assaltante. Certamente desavisado, pois aquele senhor dava ao pessoal de rua dos arredores, no fim do dia, toda a comida que sobrava. Para variar, andávamos também pela Boca do Luxo, com seus restaurantes e bares maravilhosos. Tinha um bar charmoso chamado Viking, onde era servido chope numa supertaça que parecia mais uma bacia. Depois que Teresa voltou para o Recife (estava grávida e não queria dar à luz longe dos pais), descobri, com a turma, o Jovens’ Bar, por trás do Colégio Caetano de Campos.
Fizemos, em 1967 e 1968, depois de “Grande São Paulo”, muitos suplementos especiais, sobre as diversas regiões brasileiras, a reunião internacional do FMI-Banco Mundial (bilíngue) e mais outros que esqueci. O sr. Frias estava muito satisfeito com o nosso trabalho e apoiava Calazans, mas o mesmo não ocorria com o sr. Caldeira. Depois de uma longa volta ao mundo, este voltou e não ficou satisfeito com uma série de mudanças administrativas feitas sob a inspiração do nosso chefe Calazans. Ficou difícil sustentar o nosso trabalho e eu acredito que Calazans já estava de olho em outros projetos na Editora Abril e na Fundação Roberto Marinho.
Politicamente, as coisas também estavam engrossando (no fim de 68, sairia o escandaloso AI-5, quintessência da truculência de militares antipovo anti-Brasil e pró-EUA). Em junho, quando viajamos ao Rio, onde Teresa embarcaria para o Recife com as crianças no navio Princesa Leopoldina (na época, ainda se usava navio para viagens, inclusive pela nossa costa), pude sentir nas ruas o cheiro e o desconforto do gás lacrimogêneo. Foi o meu batismo de gás. Tinham matado aquele estudante no Calabouço e a agitação fervia. Fiz o meu tradicional passeio a Santa Teresa no bondinho, o que sempre faço quando vou ao Rio, e depois voltei a São Paulo num clima de liquidação, fim de festa, fim de feira.


INDECISÃO. DEIXAR SÃO PAULO FOI UM ERRO GRAVE. EM PERNAMBUCO NA ÉPOCA A BARRA ERA PESADA

Não dá para entender por que Teresa achava tão ruim São Paulo. Ela não tinha com quem conversar porque evitou se relacionar com a minha turma (ou qualquer outra). Mas eu estava ganhando bem. A gente comprava barato, pois havia uma cooperativa de consumo dos funcionários da Folha que levava em casa, mensalmente, tudo o que ela assinalava numa lista que eles forneciam à gente.
A equipe dos cadernos especiais foi se desfazendo. Não mais eram programados novos suplementos. Em setembro de 1968, fui ao Recife para estar presente ao nascimento de Marcos, nosso quarto filho. O voo de volta a São Paulo nunca vi coisa tão atribulada. Em Salvador, ficamos dando voltas devido a um esquema para a recepção do presidente Eduardo Frei, do Chile. Na continuação da viagem, parecia aquela história de “o piloto sumiu”. Pouco movimento da tripulação, no ar um prenúncio de algo errado. Uma coisa boa é que Regina Duarte foi nossa companheira de viagem; ela estava filmando em Pernambuco a primeira versão para o cinema do Auto da Compadecida de Ariano. Quando chegamos ao aeroporto de Congonhas, o avião parou longe da estação e havia bombeiros e ambulâncias em volta. Até hoje, nada nos foi dito, embora perguntado.
Voltando à Terra da Garoa, o que eu deveria ter feito era procurar outro jornal ou revista o que não seria difícil diante do bom trabalho que havíamos feito da Folha. Quase todo ano, a Editora Abril lançava nova revista. Há ali ainda muitas editoras, jornais etc. Ao ceder às pressões de minha mulher e da família dela, cometi uma fraqueza que prejudicou toda a minha vida profissional posterior.
Pressão grande. Saudade. Indecisão. Fazer o que no Recife? O pessoal esqueceu esse aspecto. Aqui continuava aquela politicazinha miúda de ordem unida; o mercado de trabalho muito restrito e a discriminação contra os “subversivos” por toda parte, inclusive nos jornais. Em São Paulo era diferente. Como o sistema policial ainda era desconectado, os refugiados de outras regiões não eram molestados. Também eles não andavam pelas ruas com bandeiras vermelhas, claro E o clima político até dezembro de 1968 ainda era suportável.
Com a posição conquistada de editor na Folha, seria fácil encontrar emprego ali mesmo ou no Rio. Outros jornais estavam começando a seguir o filão de publicações especiais aberto pelo jornal do sr. Frias. A Abril estava contratando profissionais para a nova revista Veja, que foi lançada em outubro. O meu currículo de formação, inclusive com cinco anos de estudo na Europa, e o meu currículo profissional me abriam portas. Era só procurar, fazer contatos. A casa em que morávamos na Vila Olímpia me foi oferecida para comprar em excelentes condições.
Mas eu pisei em falso optando por tentar algo no Recife. Meu amigo Anchieta Hélcias vendeu ao Jornal do Commercio a ideia de fazer algo como os cadernos especiais da Folha e me chamou pra trabalhar com ele.O que só durou até o AI-5. Enquanto durou, eu pude ver com apreensão, das janelas do prédio do JC, então na Rua do Imperador, constantes idas e vindas de carros da polícia equipados com possantes sirenes. Sem motivo aparente. Era a preparação psicológica para o golpe dentro do golpe, que prolongaria a ditadura por mais 15 anos de sua fase mais negra. Mas Anchieta tinha outra alternativa. Convidou-me para fazer parte de uma assessoria de imprensa junto com outros jornalistas.
Essa aventura durou no máximo dois anos e não havia por aqui nenhuma alternativa. Tive que bater novamente em portas paulistanas. Se você não está presente, ali, as pessoas o vão riscando você de suas listas de possibilidades para esse ou aquele trabalho. Passei mais ou menos um ano fazendo frilas (free lances) e, em 1972, estava batendo em portas cariocas, num momento em que já não havia mais o pique de desenvolvimento da imprensa como houve nos anos 60. Terminei me acostumando novamente a viver só. Minha mulher ia uma vez ou outra passar um tempo comigo. Ia uma das crianças. Ia outra.




O RIO DE JANEIRO CONTINUAVA LINDO, MESMO COM O GOLPE

Antes de tudo quero dar aqui um recado (esqueci no último capítulo): Olá, Tereza Lúcia, você tem liberdade para dar a sua versão de sua rejeição a São Paulo, a ir para a Europa. É só me mandar.
No Rio, eu tinha alguns contatos. Coisa importante, o Partido Comunista (o Partidão, não o do B), que não optara pela luta armada contra a ditadura, funcionava para nós como uma espécie de agência de empregos. Foi através dos camaradas que terminei sendo contratado pela Bloch Editores para um novo jornal-revista bolado por Samuel Wainer, o Domingo Ilustrado, que não teve vida longa. Mas eu fiquei conhecendo um cara que eu admirava, lutador contra o fascismo e o golpismo, um dos que se bateram pela candidatura e a vitória de Getúlio em 1950 e de Miguel Arraes em 1962, e criador do jornal Última Hora, que teve grande impacto na imprensa nacional e foi uma barreira contra o neocolonialismo.
Tive oportunidade de trabalhar com gente da melhor qualidade, como João Rath, Mário Gazzaneo, Marta Alencar e mais uma penca de gente boa. Samuel, duramente atingido pelo golpe, mantinha seu brilho, sua verve, inventividade. Todas as revistas da Bloch funcionavam em um mesmo edifício na Praia do Russell, belo projeto de Niemeyer. Na cobertura, havia um restaurante em que democraticamente comiam diretores, jornalistas, visitantes. Vi muitas vezes ali JK, amigo de Adolfo Bloch. Não era mais aquele JK risonho, esfuziante, dinâmico; carregava as marcas do golpe e da traição. Ele anistiara generosamente e sem rancor aqueles militares baderneiros de Jacareacanga e Aragarças, e convivera bem com os que quiseram impedir a posse dele em 1956. Foi cassado e perseguido pelos golpistas, que cassaram também partidos, eleições, democracia.
Outras figuras que frequentavam o prédio da Manchete eram Jô Soares, Arthur da Távola, Cacá Diegues. Reencontrei ali o meu amigo Irineu Guimarães, que trabalhava na revista Manchete e fiquei conhecendo Rosa Freire d’Aguiar, grande jornalista, e uma moça linda, que casaria mais tarde, na França, com Celso Furtado.
Adolfo Bloch era uma atração à parte. Tinha surtos que o levavam a mastigar e cuspir fotos que achava ruins. Tinha um cara lá que era judeu como ele, o Caban (não lembro o nome próprio). Ele cismou que o Caban falava iídiche e só se dirigia a ele na língua dos judeus da Europa oriental. Há alguns anos, um sobrinho dele escreveu um livro muito interessante sobre Adolfo e parentela, Os irmãos Karamabloch. Do jeito como era comandado e com as brigas internas, o grupo não poderia mesmo se manter muito tempo.
Eu morava ali bem pertinho, na Praia do Flamengo, e tinha o privilégio de ir a pé para o trabalho. Não é que eu estivesse nadando em dinheiro. É que descobri um apartamento naquela praia, o 403 do número 194, que estava ali meio abandonado e, talvez por isso, o aluguel não era caro, apesar da vista maravilhosa para o Pão de Açúcar, Urca, Niterói. Coisa de barão. De novo: e o fiador? Ninguém menos que Dias Gomes e Janete Clair me salvaram. Não que eu os conhecesse. Mas novamente entrou em cena a intermediação do Partidão: meu colega Gazzaneo disse, com aquele seu jeito solene: “Deixe que eu falo com o Dias”. Dito e feito. E eu tive o prazer de ficar conhecendo esses grandes do teatro e da novela.
Nova mudança. A família veio do Recife, depois de Teresa e eu limparmos quilos de poeira de um apê havia muito fora de uso. Mas foi um tempo bom. Matriculamos Carlos Emanuel e Gustavo Henrique, os dois mais velhos (10 e 8 anos), na Escola Rodrigues Alves. Era vizinha ao Palácio do Catete (esquina da Rua Silveira Martins), em um prédio onde já funcionara a Secretaria da Presidência, antes de JK ter a má ideia de mudar a capital. Paulo (6 anos) foi para uma escolinha particular ali perto. Marcos, o mais novo, ainda era muito miúdo. A escola pública, naquele tempo, ainda era muito boa. Logo Carlos teve de passar para outra escola e a Glorinha, uma amiga nossa que trabalhava na Secretaria de Educação, obteve matrícula para ele numa escola em que a diretora selecionava rigorosamente os alunos, a Anne Frank, vizinha do Palácio Guanabara e da sede do Fluminense.



EMPREGOS MUTANTES E CAMINHADAS PELA CIDADE MARAVILHOSA

Sempre adorei o Rio, desde que passei por ali pela primeira vez em1950, viajando do Recife para Porto Alegre para fazer o curso de filosofia no Seminário de São Leopoldo (RS). Em matéria de beleza, no Brasil, balanço entre a Cidade Maravilhosa e Salvador. Reencontrei amigos no Rio, como Irineu Guimarães e Jaime Dantas (que haviam colaborado nos Cadernos Especiais da Folha de S. Paulo), e fiz novas amizades. Aos sábados à tarde, a gente sempre tinha encontro marcado em bares com apelidos, como o Cabaré dos Bandidos (esqueci o verdadeiro nome), que ficava no primeiro edifício da avenida Presidente Antônio Carlos, olhando para o prédio da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, do outro lado, e a passarela que leva ao Aeroporto Santos Dumont.
Era a primeira parada etílica de artistas que ali desembarcavam vindos de São Paulo e às vezes davam uma colher de chá no Cabaré. Tinha também a Padaria (esqueci também o nome verdadeiro), que era uma padaria mesmo, em frente à Academia Brasileira de Letras, mas tinha um espaço reservado para restaurante e bar. Ali perto ficava o Villarino (sem apelido), também olhando para a Casa de Machado. Às vezes íamos ao Lamas (Largo do Machado), que mudou de lugar pois foi atropelado pelo metrô (como também aconteceu com a Taberna da Glória, onde havia um “filé à Dom Helder”, que ali almoçava quando trabalhava, como bispo auxiliar, no Palácio São Joaquim, ali perto). Às vezes íamos ao Antonio’s, no Jardim de Alá. Bar é o que não falta no Rio, e Ziraldo escreveu uma lista dos que ele achava melhores.
Como falei, o Domingo Ilustrado durou pouco e, novamente, o Partidão me serviu de agência de emprego. A Rio Gráfica Editora, de Roberto Marinho, dono d’O Globo e da Rede Globo, estava lançando uma nova revista de economia, sob a direção de Paulo Patarra e Eurico Andrade. Da Bloch para lá fomos alguns, como João Rath, Mário Gazzaneo, e eu também. Sua sede era na Rua Itapiru, que começa no Catumbi e termina na Paulo de Frontin (Rio Comprido), com o Morro de São Carlos de um lado e o de Santa Teresa do outro. Lá fiz um grande amigo, Jô Amado, que hoje está no Observatório da Imprensa e mora em São Luís do Paraitinga, lugar maravilhoso na Serra do Mar. Hoje a Rio Gráfica virou Editora Globo, depois que os Marinho compraram aquela famosa editora de Porto Alegre.
A revista tinha um título original, $, assim mesmo, não tinha escrito Cifrão, mas todo mundo dizia o título pelo sinal. Também durou pouco, embora fosse de boa qualidade e conquistasse anúncios. É que a família Marinho estava em crise devido à separação do patriarca Roberto da primeira mulher para casar com outra. Os filhos não digeriram bem a coisa. Um deles era o presidente da Rio Gráfica, o Roberto Irineu, hoje na diretoria da Rede Globo. Consta que havia um problema na editora, que incluiria desvio de material, e o chefão aproveitou a crise familiar para dar um freio de arrumação na empresa, que incluiu o fechamento de quase todas as revistas, ficando apenas umas poucas, incluindo os gibis, seu ponto forte.
Na sexta-feira à tarde, quando saíamos da editora, Rath e eu, que gostávamos de longas caminhadas, às vezes acompanhados de um ou outro corajoso andarilho, caminhávamos por ali. Pelo Largo do Estácio (aquele da morena bonita da música) e pra outros lados. Naquela época, ainda não havia os feudos de traficantes de drogas e a insegurança que criaram. Um dia, caminhamos da Rua Itapiru até o Hipódromo da Gávea (Rath, Caban e Milton Coelho, que foi da Última Hora Nordeste antes do golpe, gostavam de corridas de cavalos).
Não fomos pelo túnel, mas subindo por Santa Teresa, passando pela casa onde a turma da luta armada escondeu o embaixador americano Charles Burke Elbrick e descendo pela Rua Alice para o Cosme Velho. A Rua Alice já foi famosa pelos seus bordéis de luxo, escondidos discretamente entre Santa Teresa e Cosme Velho. Quando a capital ainda era no Rio, a rua funcionava como uma espécie de anexo recreativo do Congresso Nacional.
Encolhida a Rio Gráfica, muita gente foi demitida. A alguns foi dada a opção de continuar. Eu poderia ter permanecido como tradutor. Preferi migrar para o Diário de Notícias, que estava supostamente passando por uma reforma nas mãos de um grupo ligado a Delfim Netto. Tinha muita gente boa nessa aventura, como Sérgio Cabral (pai do posteriormente governador Sérgio Cabral), a irmã dele Maria Luiza, linda, Marta Alencar, Rath. Mas era uma aventura mesmo, que não se sustentou. A minha saída da editora dos Marinho não se revelou uma boa opção.




       A AVENTURA DO ALTERNATIVO OPINIÃO E OUTRAS MAIS

Antes do colapso da Rio Gráfica, eu tinha começado a colaborar também no jornal alternativo Opinião, financiado por Fernando Gasparian, amigo de Rubens Paiva, assassinado pelos militares golpistas. Gasparian, empresário da indústria têxtil, era opositor da ditadura, mas nunca mexeram gravemente com ele. Sustentou paralelamente um relançamento d’O Pasquim, que funcionava no mesmo casarão do Opinião, numa rua perto da sede náutica do Vasco da Gama, na Lagoa. Depois nos mudamos, só o Opinião, para outra rua, não longe dali, pertinho da Vênus Platinada (como era chamada a sede da Rede Globo).
Eu nem conhecia o Raimundo Pereira e a turma chamada a produzir aquele jornal alternativo. Fui atraído para lá pelo Jô Amado. Descobriu-se que o cara que deveria editar a parte internacional do tablóide não sabia francês nem inglês, e já estava para ser lançado o primeiro número. Aí Raimundo me contratou. Eu e o Jô comandávamos e fazíamos as traduções autorizadas do Le Monde e do Guardian. Era a parte mais tranquila, pois a censura não se incomodava tanto com reportagens internacionais, desde que não chamassem aquele belo regime assassino de ditadura.
No mais, era uma diuturna peleja devido às exigências da censura. Tínhamos que fazer dois números ou mais para sair um. Publicada a edição inicial, a censura logo se instalou na redação (estávamos no auge da repressão). Era uma censora, que a turma foi enrolando um pouco de forma que ela deixava passar coisas que não agradavam aos gorilas. Então resolveram fazer a censura em Brasília. Piorou a situação, pois tínhamos que preparar muito material para sobrar alguma coisa dos humores inquisitoriais.
Um dia, parece que era um sábado à tarde, sobrávamos poucos ali quando chegaram uns mal-encarados procurando uma colega nissei (desculpe, amiga, esqueci seu nome). Ela já tinha saído. Pediram o endereço, que nós não tínhamos nem deveríamos dar. Subiram para a administração e começaram a arrombar arquivos. Avisamos ao administrador que veio cuidar da situação imprevista. Nós jornalistas fomos embora sem que fôssemos impedidos. Foi a primeira vez que senti o frio da possibilidade de uma prisão pós-AI-5. Soubemos que a menina foi presa, torturada, mas sobreviveu.
Outro frio desses que eu senti foi uma noite que fui com Teresa, com quem eu era casado na época, à gráfica que imprimia o Opinião, na Lapa, a do jornal Brazil Herald. Havia um desentendimento com a censura e o Gasparian esta trocando ofícios com a Polícia Federal. Fui encarregado de levar um desses ofícios na sede do DPF, que ficava numa daquelas transversais da avenida Rio Branco, que ficam absolutamente desertas nos fins de semana, sobretudo à noite. Em lá chegando, toquei a campainha, desceu um cara, havia uma escada comprida, recebeu a correspondência e eu lhe disse que esperava um protocolo de recebimento. O cara subiu. Teresa tinha ficado no táxi na rua. Quando o cara subiu eu pensei: não vão dar nenhum protocolo e eu vou ser preso; e Teresa vai ficar aí sozinha sem saber de nada. Escafedi-me. Quem foi levar outro ofício do Gasparian foi Tarik de Souza. Preso, naturalmente.
Um frio que não chegou a acontecer foi o que vou contar. O Partidão (PCB) passou algum tempo sem ser molestado, durante a ditadura, porque nunca aderiu à luta armada. Com razão, pois um punhado de idealistas sem bom treinamento militar não poderia nunca suplantar profissionais treinados e que contavam com apoio estadunidense. O resultado da opção pela guerrilha de diversos movimentos dissidentes do PCB foi o massacre de quadros valiosos, incluindo muitos jovens que acreditaram derrubar a ditadura com armas. A ditadura finalmente se retirou pressionada pela sociedade, pelo fim do efêmero e sem base “milagre” econômico.
Quando os grupos guerrilheiros já não causavam mais preocupação aos gorilas, os mais sanguinários, descontentes com a falta de gente para prender, torturar, matar, se lembraram do velho Partidão. Foi aí que começou uma nova onda de massacre, quando desapareceram Davi Capistrano, Hiram Pereira e mais um bocado de militantes, muitos ao voltar do exílio. Pouco antes dessa nova onda, a cúpula comunista no Rio cogitou a compra de uma gráfica, que serviria para fazer dinheiro e para publicações de interesse do PCB. Mas os golpistas estavam firmes e ainda haveria dois plantões militares na Presidência da República, com Geisel e Figueiredo. Fui sondado para ser o “dono” de mentirinha dessa gráfica, por ser desconhecida por ali a minha ligação com o Partidão. Quando começou a onda anti-PCB, os camaradas desistiram. Já imaginaram o tamanho da fria em que eu iria entrar?
 

      PARA O RECIFE DE NOVO. BRASÍLIA. ANISTIA À BRASILIEIRA
 


Em encontro com Anchieta Hélcias, o amigo me convida a voltar ao Recife. Ele iria assumir uma Secretaria de Estado no novo governo biônico a se instalar em Pernambuco ali por 1975. Eu não aceitaria isso em circunstâncias normais, mas estava ficando difícil continuar no Rio gastando o que eu gastava, com viagens anuais de toda a família para passar férias no Recife, exigência de Teresa. Ela tinha evoluído um pouco. No Rio, fez algumas amizades e parecia mais satisfeita do que em São Paulo. Mas continuava fora da realidade. Nem colegas meus que ganhavam mais que eu faziam tais extravagâncias. Antes de resolver me mudar mais uma vez, eu havia recebido um convite para integrar a editoria internacional da Rede Globo. E, ainda uma vez, minha decisão não foi a melhor. Lá, eu teria tudo para evoluir profissional e salarialmente, sem precisar ficar pulando de emprego em emprego. Experiência e competência não me faltavam (modéstia a parte).

Viajamos para o Recife de carro no final de 1974. O carro não estava bom e tivemos dois enguiços, perto de Campos, no Estado do Rio, e em Ilhéus, na Bahia. Antes de empreendermos essa viagem, mandamos os meninos mais velhos de avião. Só ficou com a gente Marquinho, minha irmã Ruth e Dizinha, tia deles. Um dia, estava perambulando com Marquinho (que eu também chamava Kiko Malavila, espelhado em Elke Maravilha, Fio Maravilha), esperando o pessoal que estava no teatro, e ele me pediu uma revistinha. Eu disse que as bancas estavam fechadas. Ele retrucou que tinha visto uma ainda aberta. Eu não vi, disse a ele, que se saiu com essa: “Você não presta atenção a nada” (com razão; eu sou bem distraído).

De fato, Anchieta me colocou como assessor na secretaria que estava assumindo (Indústria e Comércio) e também na consultora que estava trabalhando para Suape (eu ainda estava protegido por aquela folha corrida arranjada por Nilo Coelho). Mas, iniciado o plantão do general-presidente Ernesto Geisel e desmoralizado o “milagre” econômico, o grande projeto de Suape desaparecera das prioridades. O general tinha a cabeça poluída por petróleo e só olhou, em seu governo, para a Bahia e seu polo petroquímico. Logo secava para mim uma fonte extra de renda. Felizmente, encontrei nos corredores da secretaria velho amigo e ex-colega da Faculdade de Direito, David Hulak, que me convidou para editar a revista do NAI (hoje Sebrae-PE), Direção, da qual ele estava se afastando para ser consultor.

Quando terminou o governo biônico de Moura Cavalcanti, Anchieta foi para Brasília trabalhar na iniciativa privada, inicialmente na representação da Anfavea. Ele e Teixeirinha (o grande jornalista Antônio Teixeira Júnior, falecido tão precocemente) me abriram caminho na Editora da Universidade de Brasília (UnB). Depois de um período de seca financeira, que correspondeu à grande estiagem daquela região, que vai geralmente de junho a setembro. Apesar dos percalços, gostei muito da cidade planejada por Lúcio Costa. Acho que a Praça dos Três Poderes, seus anexos e o complexo necessário ao funcionamento do Executivo deveriam ter sido construídos na Barra da Tijuca, então longe de especulações imobiliárias. O governo do país ficaria bem instalado ali e, ao mesmo tempo, longe do burburinho da área central do Rio; e não precisaria castigar a Cidade Maravilhosa tirando-lhe o status de capital federal. O desenvolvimento daquela região central do Brasil viria independentemente da transferência do Distrito Federal para lá, como ocorreu com as de Manaus, Carajás e outras. E aquele outro pretexto medieval, o de por a capital longe do litoral e do alcance de esquadras inimigas, há muito não tinha mais sentido.

Eu gostei muito de Brasília, com seus grandes espaços para concertos ao ar livre, para passeios nos fins de semana, quando ficava, na época, despovoada com a revoada de nossos ilustres e competentes representantes para seus Estados, que eles chamam de suas bases. Ora, suas bases são as empresas que financiam as respectivas campanhas. Picaretas (honra e apoio às raras exceções, como Suplicy, Pedro Simon, que vão ficando pelo caminho), como dizia Lula quando estava na planície. O espaço do Distrito Federal e seu entorno é algo incrível, com as quedas de Itiquira (Formosa, GO), as Águas Emendadas, onde consta que começam a se desenvolver as nascentes de várias bacias brasileiras, parques, cerrado, buritis perdidos (Afonso Arinos). Infelizmente, depois do golpe de 1964, tudo aquilo caiu nas mãos de gente incapaz de entender o projeto, e deu no que deu: cidades satélites com suas favelas e a grilagem oficial promovida pelo Governo do Distrito Federal. Com os privilégios em cascata acumulados por parlamentares e altos funcionários dos três poderes, tornou-se intolerável para o mortal comum morar ali.

O meu trabalho na Editora da UnB tinha a ver com a Open University (BBC) e estava dentro de convênio com a Fundação Roberto Marinho (FRM), dirigida nesse setor por Calazans Fernandes, responsável por minha ida pra São Paulo em 1967. Para melhorar o meu salário, me colocaram num cargo fictício (porque o então reitor não o utilizava) de chefe de gabinete da UnB, com direito a um apartamento funcional. O reitor era um oficial da Marinha (coisa do golpe), José Carlos Azevedo. Um cara muito reacionário, escolhido de propósito para desmontar o projeto de universidade construído por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Era, contudo, também um cientista, com doutorado em física nos Estados unidos.

Quando estava tudo arrumado e eu já acertava com Teresa a transferência dela e das crianças para lá, criou-se um desentendimento entre a UnB e a FRM que desembocou no fim daquele convênio. Sem um apartamento para morar e sem o salário reforçado, era impossível continuar ali. Ocorre que, no final de 1979, fora promulgada a Lei da Anistia, uma estranha anistia que abrangia preventivamente réus oficialmente invisíveis e sem nenhuma punição, todos aqueles que haviam assassinado presos políticos e cometido toda sorte de torturas e outros abusos.

São os arranjos à brasileira. Nunca se teve por aqui uma Constituinte, um pacto federativo. Até a Argentina, com sua carga de nazistas ali refugiados por obra e graça de Perón e de Pio 12, puniu seus militares e civis golpistas. O Chile e o Uruguai idem. Aqui continua um tabu. O que faz com que não estejamos livres de um repeteco.


 DE VOLTA A UMA UNIVERSIDADE QUE HAVIA MUDADO DE NOME

Até o primeiro plantão do golpe de 1964 (Castelo Branco), a Universidade Federal de Pernambuco tinha a designação de Universidade do Recife. Metido a intelectual, mas bem limitado de luzes, o ditador pôs como ministro da Educação um professor da Universidade do Paraná, um tal de Suplicy, mais conhecido por censurar livros e revistas na biblioteca da instituição. A grande contribuição dele no ministério foi trocar os nomes das universidades públicas federais. A tradicional Universidade do Brasil virou Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não precisava muita competência, bastava ser um cara do naipe de Suplicy ou um milico de prestígio. Até Jarbas Passarinho foi ministro da Educação.
Enfim eu estava anistiado da minha exclusão da UFPE. Demissão absolutamente arbitrária e ilegal, com base em um IPM tão incompetentemente conduzido que, aí por 1967/68, o Superior Tribunal Militar concedeu-nos um habeas corpus geral. Que só valeu para a gente não ser ainda mais punido, pois a esculhambação gerada por um golpe militar que se autodenominava “revolução” já havia afastado da universidade, com aposentadoria compulsória para os mais antigos e demissão para os mais jovens, gente do gabarito de Antônio Baltar, Pelópidas Silveira, Paulo Freire
Tinha que formalizar a anistia com uma petição ao ministro da Educação, que incrivelmente era Eduardo Portela, um cabra que não era golpista e tinha ligação com Paulo Freire e toda a equipe de Educação de Adultos (SEC da então Universidade do Recife) desmontada em 1964. Fiquei então á disposição da UnB até o final de 1980. Desmanchado aquele projeto da Open University, viajei para o Recife, onde reassumi na UFPE no ano seguinte (1981). Fiquei trabalhando primeiro na Editora Universitária. Mas logo o reitor Geraldo Lafayette decidiu criar uma Assessoria de Comunicação Social, na qual fui posto como coordenador.
Junto com Terezinha Nunes, que naquela época estava longe de se tornar deputada, montamos uma equipe enxuta, que mais tarde se fundiu com a do Jornal Universitário. Na época, Gilberto Freyre estava em mais uma briga contra a UFPE e o reitor Lafayette, semelhante àquela que empreendera no pós-golpe. Ele patrocinara um candidato a reitor que perdeu para Lafayette. O novo reitor estava levando o Hospital Universitário do Pedro 2º, onde se instalara provisoriamente, para o prédio específico havia muito em construção no campus da Cidade Universitária. Isso contrariava alguns professores de medicina que tinham seus consultórios perto do Pedro 2º. Gilberto Freyre tomou as dores deles e levou o Diario de Pernambuco a uma campanha contra a universidade. Só saía notícia negativa.
O Diario estava praticamente sozinho na praça, pois o Jornal do Commercio havia mergulhado em crise braba e sofria intervenção judicial. Fui lá no Diario conversar com Selênio Homem, que editava o noticiário local. Grande profissional e excelente figura humana. Falei a ele sobre aquele noticiário somente negativo e a falta de notícias e reportagens sobre tanta coisa positiva que a universidade estava fazendo. Selênio me falou sobre a íntima ligação entre o jornal e GF e que, assim, o noticiário negativo não iria mudar, mas me garantiu que publicaria toda notícia e reportagem que a Assessoria de Comunicação da UFPE enviasse ao jornal. Garantido e cumprido.
Os jornais locais empregavam ainda menos repórteres na época e publicavam muitas matérias das assessorias de comunicação. Terezinha e eu começamos a explorar as pesquisas que estavam em curso, os serviços que a universidade prestava (como aerofotogrametria), que complementavam o seu orçamento, entre outros aspectos positivos. Só assim o público podia ficar sabendo do que lhe vinha sendo sonegado devido àquela campanha do Diario. Coisas da “liberdade de expressão”, sob a ótica de grupos oligopolistas que controlam a maioria da imprensa brasileira e da mídia em geral. Pior é que toda vez que se fala em regulação da mídia, seus proprietários fazem um berreiro garantindo que regulação é sinônimo de censura. Mentira, claro. Regulação da mídia existe em todo país adiantado e rico, como Estados Unidos, Grã-Bretanha; e até no Uruguai, Argentina.
É interessante notar a reação de algumas pessoas à anistia. Olhavam enviesado para os anistiados que voltavam, certamente pensando que não se faz mais “revolução” como antigamente; não foram suficientes tantas demissões, prisões, torturas, assassinatos; os comunistas estão aí voltando. Uma bizarra figura, Palhares Moreira Reis (advogado muito competente), pretendeu gozar o trabalho que a gente fazia e eu tive que lhe dizer: “Você acha que a universidade é um circo, com o picadeiro aqui na Reitoria e você como palhaço?”. Sem resposta. Era um sujeito capaz de convocar os funcionários para trabalhar na tarde da Quarta-Feira de Cinzas, olhar para a cara deles e dispensar todo mundo.


           NO JORNAL DO COMMERCIO E EM UMA REVISTA

                           DE CAROL FERNANDES



Falava eu, no capítulo anterior deste “Viver é muito perigoso”, sobre a anistia e minha volta à UFPE; e de como muitos “democratas” e “revolucionários” ficaram contrariados com a volta de tanto “comunista”. Outra figura esdrúxula que quis atrapalhar o nosso trabalho, além daquela do “circo, picadeiro, palhaço”, foi um tal de Ivon Fittipaldi, que foi pró-reitor de Pesquisa na administração de George Browne. A Assessoria de Comunicação Social se fundira com a equipe que fazia o Jornal Universitário, editado por Manuel Neto, e assim passamos a ocupar duas salas, infelizmente contíguas à satrapia de uma pessoa que não fora apresentado à educação. Ocupando um espaço vizinho ao nosso, ele, qual um Hitler retardatário, decidiu invadir toda a Europa... Além das nossas, invadiu também outras salas. Sem nos “honrar” com uma palavra, nas caladas da noite (literalmente), mandou tirar tudo o que havia nas nossas salas e jogar no corredor. Exatamente assim. Aí não dava para continuar. Foi coice demais e não estávamos em uma estribaria. Pedi demissão da coordenação e Luzanira Rego ficou no meu lugar (Terezinha já havia deixado a universidade). Um tempo depois, eu voltei a ocupar o cargo.

Mas havia também o lado agradável da convivência com novos amigos e amigas. Até hoje me encontro regularmente com José Carlos Targino, da equipe do Jornal Universitário, que depois fez mestrado em letras e passou a ensinar. Na hora do almoço ou após o trabalho, explorávamos todos os bares e botecos do entorno do campus. Tinha um que a gente apreciava muito, o Sítio. Era a casa de um cara (esqueço seu nome) que morava às margens do riacho Mauriceia, que corta o campus. Ele fez uma latada onde nos servia o precioso líquido e uns quitutes.

O meu casamento ia de mal a pior e eu inventava coisas para não chegar cedo em casa. Mas não tinha condições financeiras para me separar e ter o ônus de duas casas. Teresa estava estudando psicologia, mas ainda não tinha se formado. Quando finalmente consumamos a separação, ela já trabalhava na Apae e no Instituto de Psiquiatria do Ipsep. Aí eu só fiquei contribuindo para o sustento dos meninos.

Um belo dia, estava eu ali fazendo meus trabalhos quando apareceu uma assistente social. A moça me disse que estava com um caso pra resolver e pediu minha ajuda. Havia um funcionário chamado Alberto que ninguém queria aceitar porque ele bebia em excesso e não era dado ao trabalho. Disse-lhe que mandasse o rapaz lá pra Assessoria, imaginando que ele poderia ao menos nos ajudar a enxugar copos em nossas andanças extracurriculares. O cabra ficou meu amigo e logo comecei a chamá-lo Alberto Magno (que foi um grande filósofo e teólogo). Contou-me que, no afã de safar-se de responsabilidades, foi parar naquele imóvel da UFPE que fica na Rua Benfica e abriga um teatro. Ali o colocaram pra ser vigia noturno. Após alguns dias, estava ele na Reitoria, reclamando, no Departamento de Pessoal, de “desvio de função”.

Nesse ínterim, o publicitário Carol Fernandes, um dos poucos que me deram chance de trabalho em 1964/65, depois de eu ter sido punido pela Redentora, resolveu criar uma revista (Reclamo). Sua agência havia crescido muito e ele inovara a publicidade local introduzindo temas, músicas, pontos de vista regionais. Fui convidado para compor a equipe, junto com ases como Carlos Garcia, Fernando Menezes, Aldo Paes Barreto. Às segundas-feiras, a equipe almoçava com Carol e sempre havia algum convidado de fora. Fiquei conhecendo mais gente interessante, como Joaquim Francisco, que fora governador, Francisco José, da Rede Globo. A revista se firmou rapidamente, já começava a receber anúncios e assinaturas. Mal aconselhado, Carol foi convencido de que estava perdendo dinheiro e decidiu fechá-la.

Nessa mesma época, creio que 1986, o grupo Jornal do Commercio foi comprado pelo empresário João Carlos Paes Mendonça, que investiu muito dinheiro para pagar sobretudo débitos trabalhistas e levantar o jornal e todo o sistema. Ele convidou para dirigir a equipe de redação o jornalista Ivanildo Sampaio, que realmente mudou o jornal “da água para o vinho”, como dizia uma propaganda. Para ampliar a divulgação e melhorar ainda mais a imagem da UFPE, fui lá falar com Ivanildo, que eu já conhecia do tempo em que trabalhei na Bloch Editores, no Rio, para conversar sobre aquela tal campanha do Diario contra a universidade, que continuava, e ver a possibilidade de abrir espaço para as matérias da Assessoria. Falei lhe a respeito daquela campanha e contei-lhe a conversa com Selênio. No final, ele me perguntou se eu queria trabalhar no jornal. Ele estava precisando de mais um editorialista.

Aceitei e fiquei nesse emprego, o último da minha vida, até dezembro de 2009, quando cansei de ser ghost writer. Fui fazer meu trabalho de assessor de comunicação social e saí com um lugar na equipe que tentava resgatar um jornal que fora grande.



  REENCONTRO COM ZÉ COCHICHO E DESMONTE DE DOM DEDÉ


 
Mesmo depois que saí do Jornal do Commercio, continuei escrevendo aquele artigo semanal, aos sábados, que vinha fazendo desde os anos 90. A origem desses artigos vale a pena contar e eu conto no próximo capítulo. Foi uma temporada muito boa essa no JC. Fora veteranos da imprensa local, convivi com o pessoal mais jovem, fiz novas amizades. Aprendi muito com a meninada, gente de muita garra e competência. Quando comecei a trabalhar ali como editorialista, tinha dois ilustres companheiros, o professor, escritor e jornalista Nilo Pereira e o jornalista e escritor José Gonçalves de Oliveira, ou J. Gonçalves de Oliveira (como ele se assinava; não gostava do José ou Zé; mesmo assim, era mais conhecido entre os colegas como Zé Cochicho).

Eu havia conhecido Zé Cochicho na comemoração da vitória de Cid Sampaio, em 1958, na Cabana, um point à época muito popular no Treze de Maio, por trás da Escola Normal (hoje Câmara Municipal) e vizinho da Festa da Mocidade. Na época, Zé era muito diferente do que se tornou depois. Alegre, brincalhão, afinado com a esquerda. Pianista, ele tocava de graça, em troca de umas bramotas, no Flutuante, um bar sobre uma embarcação que ficava ancorada no rio ali perto do jornal, junto à Ponte Maurício de Nassau. Com o golpe e meus muitos deslocamentos, o perdi de vista.

Reencontrei-o muito diferente. Virara um direitista radical, reacionário mesmo, era amargo e de pouca conversa. O que me contaram é que a briga dele com a esquerda foi porque, sendo oficial de gabinete de Pelópidas Silveira na Prefeitura, acreditou que continuaria no cargo com a vitória de Miguel Arraes. O que não ocorreu. A mudança da alegria para a amargura não sei como foi. O certo é que continuava bom escritor e jornalista. O outro editorialista era o professor Nilo Pereira, velho colaborador do jornal. Mais tarde conheci um dos filhos dele, o médico, professor e escritor Geraldo Pereira. Gostava dele, de sua conversa e de seu blogue, onde contava aventuras da adolescência e reinações no Colégio Nóbrega. Ele tinha uma casa no condomínio onde moro em Aldeia. Morreu precocemente há alguns meses.

Antes dessa longa temporada, eu tive outras passagens pelo JC. Todas rápidas. Uma quando voltei de São Paulo em 1968. Outra mais adiante, quando o jornal já estava em crise, pagava com vales, não tinha quase ninguém. Mais uma outra, depois da intervenção judicial, quando o chefe era um cara conhecido como Gilson Pó de Serra (o nome verdadeiro não lembro). Um dia chegaram lá umas pessoas do Sesc contando sobre uma série de demissões e outras arbitrariedades. Publicamos. No dia seguinte, o Gilson manda um papel dizendo que estava tudo normal no Sesc e dava tudo por encerrado. Aí eu resolvi publicar o que o Gilson mandara como se fosse uma nota oficial dele, com assinatura e tudo. Claro que fui demitido sumariamente. Em 1965, eu tentara uma vaga de copidesque; mas fora rejeitado porque meu passado me condenava: preso, processado, demitido da universidade, subversivo, perigoso comunista.


                    LONGA E POLÊMICA SÉRIE DE ARTIGOS NO
                             JORNAL DO COMMERCIO

A origem dos meus artigos semanais no JC é interessante. Minha volta ao jornal, a convite de Ivanildo, coincidiu com o início da administração de dom José Cardoso Sobrinho na Arquidiocese de Olinda e Recife, após a renúncia de dom Helder Câmara. Essa mudança foi um desastre, só possível devido à prepotência e arrogância da Cúria Romana, junto com o abandono, na prática, dos avanços do Concílio no caminho de regresso (nada de retrocesso) da Igreja Romana às tradições apostólicas do cristianismo. Consta que foi escolha pessoal do cardeal dom Eugênio Sales, arcebispo do Rio, que o amoitou numa diocese perdida de Minas Gerais enquanto aguardava a saída compulsória de dom Helder (o Vaticano força os bispos a renunciarem aos 75 anos de idade, mas o papa está livre dessa regra imbecil).
Interessante recordar que, nos primeiros tempos do cristianismo, os bispos eram escolhidos por seu clero e as comunidades de fiéis. A supercentralização engendrada pelo Vaticano dos papas-príncipes nada tem a ver com a tradição apostólica.
Dom Dedé, como ficou conhecido no meio jornalístico depois que o jornalista José do Patrocínio, colega de escola do arcebispo na infância, revelou que ele tinha o apelido de Dedé Cabeção, nunca foi um pastor, um homem de Deus identificado com o seu povo. Preferiu agir como homem do direito canônico (Bíblia, Evangelho, pra quê?). Com alguns meses de administração, já se havia incompatibilizado com todos (padres e leigos) que botavam fé e esperança no Concílio e se identificavam com o pastorado de dom Helder. Expulsou padres estrangeiros que tinham vindo para o Recife atraídos pela construção de uma Igreja conciliar. Fechou duas instituições de formação de padres identificadas com a atualização da Igreja, o Seminário Regional do Nordeste, na Várzea, e o Instituto de Teologia do Recife (Iter), nos Coelhos.
Como ele não se responsabilizava por seus malfeitos, atribuiu a iniciativas do Vaticano esses fechamentos. Mas, como preposto e homem de confiança do Vaticano, ele se encarregara antes de tramar intrigas, semear desconfiança. Quanto ao afastamento de padres, ele fazia tudo furtivamente, hipocritamente. Ora era o bispo da diocese original do padre, ou seu superior, no caso dos membros de congregações religiosas, que o queria de volta. Ora era o próprio padre que queria partir. Além de burro, ele era hipócrita, dissimulado, mau caráter. Mas o papa, com toda aquela sua autoproclamada infalibilidade, se recusou a reconhecer a tragédia que se abatera sobre a nossa arquidiocese. Dois papas, o polonês e o alemão.
Comecei então, com a anuência de Ivanildo, a escrever uns artigos sem data certa, e englobados sob a rubrica “Desmonte eclesiástico”, contando todas as arbitrariedades de Sua Excelência Reverendíssima. Claro que o preposto do Vaticano não gostou. Em vez de explicar o inexplicável, começou um cerco aos diretores e ao dono do jornal. Pediu minha cabeça, mas não conseguiu. Padre Edvaldo Gomes, de Casa Forte, bem relacionado com o sr. João Carlos e dona Auxiliadora, foi um dos meus grandes advogados. Foi aí que Ivanildo me disse: Olhe, vamos deixar o arcebispo em paz. Mas você fica escrevendo um artigo toda semana sobre outros temas. Daí a origem desses meus artigos.
Dom Dedé, porém, era tão sem luzes que não soube aproveitar o resultado de suas pressões sobre a imprensa. Tanto que um belo dia, creio que no aniversário do mandarinato dele, Roberto Tavares (na época editor executivo) organizou uma série de reportagens e artigos pouco simpáticos ao eminente jurista, inclusive um meu. Era por 1990. O arcebispo virou fera. Não sei como não inaugurou, na ocasião, sua fúria anatematizante, com direito a excomunhões e tudo o mais. Com seus padres fiéis, iniciou uma verdadeira campanha contra o Jornal do Commercio e demais meios de comunicação do Grupo JCPM, com a ajuda também de um irmão dele bispo de Petrolina. Que os católicos não deveriam assinar nem ler o jornal nem ver e escutar a TV e rádios, e por aí.
Houve outra pausa quanto a críticas ao arcebispo, mas, no tão esperado final de sua chefia, ele estava tão desmoralizado que já não conseguia pressionar ninguém. Para tanto contribuíram maus negócios imobiliários com o patrimônio da arquidiocese. Note-se que o Vaticano perdoa qualquer arbitrariedade (até pedofilia) da parte de bispos e clérigos, mas, quando entre em causa o sacrossanto dinheiro, a coisa muda.
No final de sua catastrófica administração, dom Dedé Cabeção perdera todo o prestígio no Vaticano, tanto que não teve influência na escolha de seu sucessor, um autêntico homem de Deus (tirante suas obrigações diante do papado), dom Fernando Saburido. Foi quando apelou para a excomunhão, fulminando uma garotinha engravidada pelo padrasto que abortara, seus pais, médicos envolvidos. Só faltou a fogueira da Inquisição.
O jornal então liberou geral reportagens sobre os desmandos do arcebispo, críticas. Mas o que o incomodou mesmo, no que eu escrevia, foi um artigo na revista Algomais sob o título “Pastoral imobiliária”, no qual mostrava, com fatos, como ele torrava os recursos da arquidiocese, associado ao dirigente da Santa Casa de Misericórdia, em negócios comprometedores, como Paço Alfândega e a fracassada tentativa de transformação da área verde onde fica o Hospital Ulysses Pernambucano, na Tamarineira, em xópim (é como escrevo shopping aportuguesadamente). Dom Dedé entrou com processo na Justiça contra mim, baseado na Lei de Imprensa golpista. Teve só uma audiência. Quase simultaneamente, o Supremo Tribunal Federal suspendia as maiores aberrações dessa lei.
Além dos artigos para o JC, atualmente mensais pois acho que se deve abrir espaço para gente mais jovem, escrevo uma vez por mês no jornal virtual O Porta-Voz, onde tenho a companhia de gente ilustre como Leonardo Boff, Eduardo Hoornaert, Frei Beto, entre outros. Mais recentemente, iniciei este blogue, onde estão incluídas estas memórias


Viajo (menos do que gostaria; falta grana), vejo filmes, leio, tento reler livros que me tocaram. Estou muito contente com o casamento com Patrícia, que conheci em 1999, ao apagar das luzes do século 20.



                  ANDEI LONGES TERRAS, LIDEI CRUAS GUERRAS

Agora, vocês viram como “viver é muito perigoso”, “é um descuido prosseguido”, como repetia Riobaldo Tatarana a seu compadre Quelemém (em Grande Sertão – Veredas, de Guimarães Rosa). Minhas leitoras e leitores que duvidavam dos perigos da vida puderam constatar que los hay para muitos (como no dito espanhol “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”). “Andei longes terras, lidei cruas guerras” poderia também dizer, com Gonçalves Dias. Os perigos, trancos e barrancos poderiam ter sido menores se eu fosse mais firme e decidido em encruzilhadas decisivas, tomando as atitudes que se impunham em determinados momentos. Como já falei a vocês de diversas más opções nos capítulos anteriores, basta lembrar o fato de ter permanecido aqui no Brasil aguentando as estripulias da gorilada: vendo pessoas que antes se dedicavam à conscientização e melhor organização do povo sendo presas, torturadas, assassinadas; presenciando o crescente domínio dos Estados Unidos sobre o nosso país em detrimento do nosso desenvolvimento e cultura; sendo eu mesmo preso e punido com perda do emprego sem direito a um julgamento decente.
Bestamente. Em vez de aceitar a bolsa de estudos que me obteve do governo francês o cônsul da França em Pernambuco, o inesquecível Marcel Morin. Tão pernambucanizado que o tratavam por Marcelo Amorim, era sócio do Madeiras do Rosarinho e adorava mulatas, tanto que, enxotado daqui pela gorilada, foi parar na África. Muitos anos depois de 1964, encontrei-o, já meio esquecido das coisas, em um acerto do Bloco da Saudade. Deixa pra lá. “O que passou passou, não tem mais jeito”, como diz o filósofo Fagner.
Pretendo rever essa longa história que contei a vocês para ir acrescentando algo esquecido, fazendo correções. Nas ocasiões em que o fizer, avisar-lhes-ei, como diria o homem da vassoura, Jânio Quadros, predecessor de Fernando 1º (o Collorido).
 
 


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