segunda-feira, 14 de abril de 2014

DA NOSSA CAFUA VIMOS PASSAR UMA "VACA FARDADA"


Essa minha prisão arbitrária e sem nenhum motivo durou um mês. Praticamente todo o mês de agosto de 1964. Logo de saída, teve um episódio interessante. Pouco depois do rancho, que é o nome de refeição em quartel, apareceu na grade um senhor todo de branco, que eu não conhecia. Perguntou quem era Juracy Andrade. Eu me apresentei e ele me perguntou logo: - Você é comunista? Respondi que não. Os jesuítas me ensinaram um recurso muito prático, quando não se quer dizer a verdade nem mentir. É a "restrição mental". Você responde algo, mas fazendo mentalmente uma restrição que aponta pra outro lado. Além do mais, o meu comunismo é muito mais o dos Atos dos Apóstolos que o da filosofia de Marx e da prática leninista.
Então aquele senhor me disse que era o médico e também militar Jayme da Fonte, acionado por um tio de Tereza, com quem eu era casado na época, o advogado e professor de direito Mário Neves Baptista. E disse ainda que iria me soltar logo. Claro que não o conseguiu. Oficial reformado não tinha grande prestígio no governo golpista. De todo modo, sou muito agradecido ao famoso criador do primeiro pronto-socorro privado do Recife, por sua boa vontade.
Aí fui me acostumando com a rotina de prisioneiro. De trás das grades, vimos passar o general Ernesto Geisel (mais tarde ditador de plantão), fazendo de conta que estava investigando casos de tortura em Pernambuco. Mais tarde, essa figura afirmou, em entrevista a pesquisadores, que a tortura se justifica em determinados casos. Vimos também passar o general Mourão Filho, aquele que se autodefiniu como uma "vaca fardada". E tinha um oficial médico (mais médico que soldado) que não gostava de rapapés, continências. Quando ele não estava distraído, cortava volta lá pelo fundo do pátio para não ter de receber continência de uma sentinela postada à frente de nossa cafua. Mas quando não se lembrava e ia passando distraído, fazia sinais de impaciência para a continência do guarda. Sem outra coisa pra fazer, a gente ria.
Para encher o tempo, pedi a minha irmã Ruth que me levasse uns livros. Ela me levou toda a coleção de Sherlock Holmes. Quase que eu virava um detetive. Toda quinta-feira, a gente podia receber visita da família. E o tempo passando sem eu saber por que estava ali mofando.
Uma noite, fui chamado por um milico. Aquele mistério. "É agora que vão me pegar." Era o tal capitão do IPM, sempre misterioso e querendo fazer terrorismo. Aí é que eu fiquei sabendo por que estava preso e quem mandara me prender. Já era o final do mês. O capitão perguntou as mesmas coisas de sempre: se e por que havia disputas internas na equipe de Paulo Freire. Mais uma vez eu me recusei a falar sobre isso. Ousei perguntar ao militar por que ele me mandara prender, uma vez que eu estava em local certo e sabido, não era foragido da Redentora. Com ar de muita perspicácia, ele respondeu que era pra gente não poder combinar os depoimentos. Ora, tivéramos cinco meses para fazer isso, se quiséssemos. Mas era gente assim totalmente despreparada que comandava os IPMs. O capitão, ou major, era tão alienado que ainda era lacerdista, quando o corvo golpista Carlos Lacerda não apitava mais nada e já se preparava para o próximo golpe. Creio que no dia seguinte fui solto. O IPM vitimou muita gente da UR (hoje UFPE), que foi aposentada ou demitida. O próprio Paulo Freire, Pelópidas Silveira, Antônio Baltar e quase toda a equipe do SEC, entre outros. Uns três anos depois, o STM julgou o processo tão claudicante e malfeito que deu habeas corpus a Arthur Carvalho, que fizera a solicitação, e pegando todo o resto da turma. Mas já estava todo mundo julgado e punido.

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