Prezadas e prezados que me acompanham nestas
postagens, seja sempre ou esporadicamente, permitam-me hoje algumas divagações,
incluindo comparações entre Pindorama e a velha Europa. Há alguns instantes,
nossa secretária do lar (doméstica, dado o nosso passado escravagista, lembra mucama)
Nita se preparava para tomar um ônibus, se é que essas desgraças sucateadas
merecem esse nome, para Chã de Cruz, onde ela mora, a três quilômetros do meu
esconderijo aldeense. São só três quilômetros, mas neles cabe toda a vergonha
do descuido dos potentados com tudo o que se refere ao povão
Observo que a obrigação de ter carro próprio,
para a classe média mais média brasileira, é abominável. Você já paga impostos
escorchantes e sem retorno e ainda tem de arcar com as prestações do rodante e
de sua manutenção, do seguro. Com tudo o que os desgovernos lhe arrancam, daria
para você ter um transporte público decente, atendimento médico-hospitalar,
escola que faça de seu filho uma pessoa educada e instruída etc. Qual o quê?
Você ainda tem de sustentar os negociantes da saúde e do ensino, enfrentar
imensos engarrafamentos que tolhem carros privados e transporte público. O
travamento final vem aí, gente.
Nita nos conta que, além do transporte ruim, coisa
para animais irracionais (e olhe lá), ela tem dificuldade com um cartão recarregável
aí que falha frequentemente, com um treco que engole o dinheiro, mas só se a
cédula for bem novinha e cheirosa, como essas que circulam na mão do povão... A
impressão que tudo isso deixa é de que a burocracia classista burguesa tem um
departamento de especialistas em aporrinhar o povão e infernizar sua vida.
Aí eu peço licença a vocês para dar uma voltinha
saudosa pela velha Europa, onde estudei há mais de 60 anos. Não pretendo dizer
que eu seria o tal por ter feito meu curso de teologia ali, de 1952 a 1957.
Naquele tempo, não havia tantas bolsas como hoje, mas na época eu era
seminarista e vivia às custas da Santa Madre. Eu não sabia nem o que era
emprego e salário. Trabalho sim, pois estudo é trabalho e dos grandes.
Quando eu cheguei a Roma no outono de 1952,
depois de balouçar por umas duas semanas num navio daquele tempo, partindo do
Rio (apesar de tudo, “continua lindo”), fazia apenas sete anos que havia
terminado a guerra de 1939-45. Junto com tantos outros países, a Itália havia
sofrido demais, apanhando de todos os lados, invadida pelos nazistas e depois
pelos aliados, que a libertaram da barbárie, inclusive com a modesta
colaboração da brasileira FEB. Sete anos após a rendição da Alemanha de Hitler,
tudo funcionava perfeitamente na Itália: transportes urbanos e interurbanos,
saúde, ensino, turismo (grande fonte de renda) etc.
Em trens com horários certos, se podia viajar
barato por toda a Europa, menos o leste comunista. Os ônibus públicos de Roma
eram geridos por uma empresa pública municipal que tinha a sigla SPQR (Senatus
populusque romanus = o Senado e o povo de Roma), usada para abrir os decretos
da Roma antiga. Eles tinham horário certo, não rodavam superapinhados, não
cortavam paradas. Havia até as paradas obrigatórias e as fermate a richiesta,
onde o carro parava quando se pedia. A propósito, o falecido professor Geraldo
Lapenda, grande linguista e que foi reitor da UFPE, com quem eu me entendia
muito bem, contou-me que também desembarcou na Itália como seminarista em
Gênova, mas em 1945. Para ir de trem para Roma, era preciso ligar para a
estação e saber a que horas saía um comboio. Mas funcionava, mesmo estando
quase tudo em conserto após tanto bombardeio.
Depois, viajando durante as férias, conheci a
Suíça, Alemanha, França, Bélgica. A Suíça, que ostenta neutralidade, mas lucrou
muito com a guerra, estava intacta. Mas aqueles outros países, multo
maltratados pela guerra, também estavam recompostos. É verdade que, com medo do
comunismo, os americanos tinham investido bilhões de dólares, a fundo perdido,
na reconstrução da Europa (Plano Marshall). Os europeus, no entanto, souberam aproveitar
a ajuda. Também temendo o comunismo, quase todos os países ocidentais partiram
para a construção do chamado Welfare State (Estado de Bem-Estar), que só agora as
sucessivas crises do capitalismo começam a deixar de lado.
Falei acima que eu nem sabia o que era emprego
e salário, graças à Santa Madre. Também nem sabia o que era carro particular.
Não precisava, graças ao excelente transporte público europeu. Acredito que não
era tão bom assim na Espanha e em Portugal, na época vivendo um atraso que
vinha da Inquisição.
Gente, tá bom de parar, mas sou capaz de
continuar este papo noutra postagem; mesmo porque, mesmo sem guerra, o Brasil
(ou melhor sua Casa-Grande) optou pelo atraso.
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